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terça-feira, 22 de novembro de 2011

Desencontros inventados


Pegou-lhe no pulso e puxou-a delicadamente. Avançou devagar como se se aproximassem do fim do território conhecido. Apontou, emocionado, para a frente dos pés de ambos, uma sombra no chão, a luz era já pouca. Ela esforçava-se para ver o que ele lhe mostrava com tanto entusiasmo, calado pela emoção. Depois percebeu e não deu tempo à surpresa, não podia dar. Ou talvez não fosse exactamente uma surpresa, talvez já o soubesse há muito tempo, desde sempre.
Falou, sem parar, sem hesitar. Sentindo que tinha de lho dizer, que o ia magoar, pôr em causa uma parte importante dele, mas, se não o fizesse, nenhum dos dois se salvava, ele também não. Falou a apontar para o mesmo sítio que ele apontara, como se visse o que ele via.
O que me mostras é só teu. Não mo devias dar, não mo devias sequer mostrar. Tudo isto que me queres dar, não existe, não tem nada meu, não tem nada nosso. Tudo o que vês, daqui até ali, foste tu que o construíste. Consegues ver o que é meu? Foste tu que o puseste lá. Mas são espaços paralelos, a solidão deles vê-se daqui, estão ao lado um do outro e não se tocam. O que é meu e o que é teu é facilmente separável. Não há aqui nada nosso, não o quero.
Tirou devagar o braço da mão dele, que não ofereceu resistência. Ele estava paralisado, a olhar para onde ela apontara. Apesar de ser o mesmo sítio, não apontara para o mesmo que ele, não vira o que ele lhe quisera dar.
Não sabia o que responder. Estava zangado, sobretudo consigo próprio, por não ter previsto a reacção dela. Se a construção dele tinha um defeito, era esse: não ter previsto o eterno feminino de nunca ficarem satisfeitas com o que se lhes dá. Fizera tudo aquilo para ela. Inventara aquele amor para ela. Perfeito, sem uma falha. Deu-lho, pô-lo nas mãos. O amor mais perfeito que a humanidade tinha conhecido, concebido, planeado, construído por ele. E ela recusara-o. Pior, não o reconhecera. Dizia-lhe que o que ele lhe dava não existia fora dele. Era só dele, apaixonado pelo amor, apaixonado pela perfeição do que criara. Com o único defeito de precisar dela para existir. Ou talvez nem precisasse, talvez pudesse passar sem ela, ficar ali sozinho a olhar, fascinado por aquela perfeição.
E agora? Não sei, sou só a narradora. Estas personagens difíceis que se metem em histórias desencontradas esperam sempre que alguém lhes resolva os problemas, lhes encontre uma solução dramática, trágica ou feliz. Estou cansada destas personagens que se inventam, inventam problemas, inventam amores inventados e esperam que lhes resolva a vida. Não, desta vez não, meus amigos. Leiam alguma história que vos sirva de inspiração, vejam um filme do Woody Allen, o que quiserem. Eu vou ler um livro de ficção que fala de gente com problemas reais e que não se dedica a inventar a vida de outros. Vão à vossa vida. 

RD, 21.11.2011

segunda-feira, 7 de novembro de 2011

A casa dos horrores


Brincam na rua. Vestidos de esqueletos, como a contrariar a nudez que a morte traz. Uma morte ao contrário, vestem-se de ossos. Leva a carne, as veias, a pele. Ficam os ossos limpinhos, agora pintados no tecido. Vestidos de bruxas, de vampiros, de seres deformados, com maquilhagens cada vez mais sofisticadas, tornam as aberrações fingidas mais próximas de uma realidade que não existe.

Exorcizam os medos, brincando com eles. Os risos roçam a histeria, há uma nota de medo nas gargalhadas que ecoam na noite. E talvez seja uma forma saudável de lidarmos com os nossos esqueletos. Todos temos esqueletos nos armários, uns mais limpinhos, outros já cheios de pó, irrecuperáveis, escondidos lá no fundo mais inacessível, escuro, a porta mais alta. Podemos modernizar os nossos medos, tal como modernizamos os armários, limpá-los, expô-los,  organizá-los.

Esqueletos expostos num belo closet, demarcados por organizadores de roupa, de sapatos,  de cintos. Há muito tempo atrás, um arquitecto tentou vender-me que o moderno, o que se usava lá fora, era o closet, tentando com isso convencer-me da minha necessidade de um armário aberto, sem portas. Eu, que não sou moderna, achei aquilo uma estupidez. Ainda acho. Por que raio uma palavra que vem de fechar, fechado, há de nomear um espaço de exposição de roupas? Será que deveriam ficar com as etiquetas penduradas, à vista?

Também podíamos pôr um preço nos nossos esqueletos, nos nossos medos, nas nossas vergonhas, nas nossas perdas, e organizá-los por valor, de forma a integrarem harmoniosamente a paisagem do nosso closet. Os mais caros são os que se podem mostrar, aqueles que nos foram impostos e que todos conhecem e aceitam. Até nos tratam melhor por os termos. Podemos falar deles. Podemos mostrá-los. São esqueletos limpinhos. O esqueleto do meu pai, à frente, ao lado de uns sapatos Louboutin. Ou o do meu cão. Não estou a comparar a perda do meu pai com a do meu cão. Ocupam espaços diferentes, apesar de o meu pai não ter sido alto e de o meu cão ter sido grande.

Nas prateleiras mais altas, ainda à vista, mas já não tão expostos, os nossos medos dizíveis. As fobias. Água a entrar-me pelos olhos. Iguanas a fugir à minha frente. Coisas dessas. Ao lado das camisolas que ainda não conseguimos deitar fora, mas que já não nos fazem falta.

Lá no fundo, no canto escuro, num sítio a que nem os mais modernos leds chegam, a caixa negra. Os nossos medos mais tenebrosos, mais miseráveis, mais feios. Ficarmos nus em público. Caírem os dentes todos ao mesmo tempo. O que fiz naquele verão. Alguém olhar para nós e ver como somos realmente. Somos feitos da matéria mais ignóbil e mais preciosa. Vida e podridão. Capazes do melhor e do pior. A caixa que ninguém pode abrir, a menos que nos afoguemos. Não deixamos que se aproximem. Está ligada a mecanismos de defesa fantásticos e tecnologicamente avançados, que incluem cães de três cabeças e feixes de laser. Nem um agente secreto de sucesso de bilheteira. Porque nós estamos sentados em cima dela, caso tudo o resto falhe. Não a abrem. E tão obcecados estamos com a sua defesa que às vezes somos só nós e ela, os dois sozinhos. Já ninguém a quer ver e nós mantemos a guarda.

É feita de chumbo e o peso mantém-nos com os pés na terra. Se nos atrevêssemos a deixá-la vulnerável, talvez conseguíssemos voar. 


RD, 31.10.2011