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segunda-feira, 14 de maio de 2012

Distrai-te.

Distrais-te por um pouco. E acreditas, nesse momento, que tudo pode ser novo. Como se não tivesse sido já tudo vivido por ti, pelos outros antes de ti, representado, filmado, pintado, escrito. Como é que, no meio de tanto uso, ainda consegues acreditar que podes ter um bocadinho intocado? Em que ninguém tocou, a que nunca ninguém antes chegou. Não magoado, nem acarinhado. Um bocadinho dentro de ti a que nunca ninguém chegou. 

Existe ou inventas dentro de ti um espaço novo? Tens de o criar? Se o crias, é feito de memórias do que já foi, corrompido pelas ondas que nele embateram com violência, exausto do brilho do sol, demasiado intenso, demasiado próximo. Criaste-o e não é novo. A memória das ondas virá e tu encolhes-te antes de as sentir rebentar. A memória do sol virá e tu abrigas-te da dor da pele em carne viva. Criaste aquele bocadinho, acreditaste-o novo e no entanto. Quando te distrais.  

E se for mesmo novo, não transformado, não terra fértil que já foi cadáver, não ar fresco que já foi milhões de vezes filtrado pelas folhas? Se houver mesmo a capacidade de criar a partir do nada o que não havia antes, o que ninguém sonhou, o que ninguém nomeou? Sem usar qualquer ferramenta conhecida, sem recorrer a qualquer matéria existente, feita, refeita, desfeita? Apenas a tua vontade de criar onde antes era o nada e finges que não sabes que para haver o nada, o seu contrário também era. A tua vontade de criar, o teu sonho, o teu gesto criador e a palavra. 

Como nomeá-lo? Crias uma palavra nova ou sujeitas-te à inevitabilidade de todas as palavras derivarem de outras, serem compostos remisturados de anteriores composições? Podes criar uma palavra, talvez seja a parte mais fácil da tua vontade de lhe ofereceres o que nunca foi. Xinofacila. Qualquer coisa assim, mas mais bonita. Não duvidas que consegues. E ela, reconhecê-la-á? Aliás, já pensaste que tudo o que de novo lhe criares apenas lhe vai parecer estranho? Como fazes para reconhecer o que nao existia antes? Talvez lhe possas dar um elemento de identificação, qualquer coisa que lhe diga do que se trata, para que, a seguir, ela aceite olhar para o que nunca viu com o nome que tu lhe deste. É isso, o nome. A palavra. Chama-lhe amor e ela virá. O resto é tudo construção. 

Ou desistes e decides que transformar é tudo o que se pode fazer, tudo o que lhe podes dar. Reciclar o lixo das tuas emoções, das tuas frustrações, os teus piores medos tornados segurança, os teus desejos mais elevados tornados cuidado. E oferece-lho assim, num papel também ele reciclado. Podes chamar-lhe amor. Mas tens de lhe dar um número. 

RD, 14.05.2012