As luzes vão
guiar-te de volta a casa. Sabes que encontras sempre as luzes que te guiam de
volta, marcam os contornos da pista de aterragem, escrevem as curvas da estrada,
assinalam a entrada da porta. As luzes guiam-te para onde és esperado.
E entras em casa e
sabes que fizeste o caminho e voltaste. Ulisses sempre renovado, o regresso
está garantido, mesmo que sejam dez anos, mesmo que sejam muitas tempestades,
mesmo que seja a deusa que te empata na ilha e te faz sentir a perfeição, sabes
que as luzes te levarão de volta a casa.
Esta segurança,
feita de luz e de casa, só é ameaçada quando entras em casa e aquela não é a
tua casa. O cheiro não é o da pele que conheces de cor, as cores não são as que
te fizeram despertar nas manhãs em que o mar não se distinguia do nevoeiro e
eram os olhos dela que te mostravam o caminho.
Estás em casa. E
tens luz. O conforto antecipado tornado estranheza dá-te vontade de virar as
costas e de voltar a sair. Talvez te tenhas enganado na porta. Há tantas portas
vermelhas. Tantas portas com o mesmo número, tantas ruas paralelas. Mas tu
sabes que aqueles são os teus objetos. Sabes que foste tu que os compraste em
momentos em que te pareceram essenciais para respirares. Sabes que foste tu que
decidiste precisar de uma casa a que voltar e tornaste esse ponto fixo na tua
vida o que te prende e o que solta. Podes ir porque podes voltar. E se a estranheza se prolongar para além daqueles momentos iniciais em
que o cheiro não era o que trazes na pele, o sabor não é o que trazes na boca,
as cores não são o que trazes nos olhos?
Não vale a pena
antecipar o reconhecimento ou a estranheza. Um deles virá e talvez venham os
dois, à vez. Ou em simultâneo e tudo começa a parecer familiar exceto um
pequeno pormenor, qualquer canto que devia ter luz e está escuro. Se não olhares para aquele canto, habituas-te
à imagem que trazias dentro de ti e que se começas a colar à da casa a que
voltaste. O papel autocolante é tão difícil de manipular, sobrepões as imagens
e uma bolha, uma ruga, um desvio. Não fica perfeita. Mas tu tiveste perfeição e
faltou-te a falta dela.
As luzes apagam-se.
Tu deitas-te e olhas para o teto e não sabes se aquele é o teu teto. Tantas
viagens. Tantos tetos. Tantas casas. E agora a tua, a única que te pertence, o
teto que é o teu estranha-te e não te deixa dormir. Longe, alguém olha para o
teto e sabe que tu és a casa. Um dia, as luzes vão guiar-te de volta a dentro
de ti. E tu encontras a casa. E não colas, não sobrepões, não fraturas, não te
cortas, não te dobras. És inteiro lá dentro, dentro de ti, ali onde as luzes te
levam.
RD, 29.04.2012