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domingo, 29 de abril de 2012

As luzes vão guiar-te a casa


As luzes vão guiar-te de volta a casa. Sabes que encontras sempre as luzes que te guiam de volta, marcam os contornos da pista de aterragem, escrevem as curvas da estrada, assinalam a entrada da porta. As luzes guiam-te para onde és esperado.

E entras em casa e sabes que fizeste o caminho e voltaste. Ulisses sempre renovado, o regresso está garantido, mesmo que sejam dez anos, mesmo que sejam muitas tempestades, mesmo que seja a deusa que te empata na ilha e te faz sentir a perfeição, sabes que as luzes te levarão de volta a casa.

Esta segurança, feita de luz e de casa, só é ameaçada quando entras em casa e aquela não é a tua casa. O cheiro não é o da pele que conheces de cor, as cores não são as que te fizeram despertar nas manhãs em que o mar não se distinguia do nevoeiro e eram os olhos dela que te mostravam o caminho.

Estás em casa. E tens luz. O conforto antecipado tornado estranheza dá-te vontade de virar as costas e de voltar a sair. Talvez te tenhas enganado na porta. Há tantas portas vermelhas. Tantas portas com o mesmo número, tantas ruas paralelas. Mas tu sabes que aqueles são os teus objetos. Sabes que foste tu que os compraste em momentos em que te pareceram essenciais para respirares. Sabes que foste tu que decidiste precisar de uma casa a que voltar e tornaste esse ponto fixo na tua vida o que te prende e o que solta. Podes ir porque podes voltar. E se a estranheza se prolongar para além daqueles momentos iniciais em que o cheiro não era o que trazes na pele, o sabor não é o que trazes na boca, as cores não são o que trazes nos olhos?

Não vale a pena antecipar o reconhecimento ou a estranheza. Um deles virá e talvez venham os dois, à vez. Ou em simultâneo e tudo começa a parecer familiar exceto um pequeno pormenor, qualquer canto que devia ter luz e está escuro.  Se não olhares para aquele canto, habituas-te à imagem que trazias dentro de ti e que se começas a colar à da casa a que voltaste. O papel autocolante é tão difícil de manipular, sobrepões as imagens e uma bolha, uma ruga, um desvio. Não fica perfeita. Mas tu tiveste perfeição e faltou-te a falta dela.

As luzes apagam-se. Tu deitas-te e olhas para o teto e não sabes se aquele é o teu teto. Tantas viagens. Tantos tetos. Tantas casas. E agora a tua, a única que te pertence, o teto que é o teu estranha-te e não te deixa dormir. Longe, alguém olha para o teto e sabe que tu és a casa. Um dia, as luzes vão guiar-te de volta a dentro de ti. E tu encontras a casa. E não colas, não sobrepões, não fraturas, não te cortas, não te dobras. És inteiro lá dentro, dentro de ti, ali onde as luzes te levam.

RD, 29.04.2012

sábado, 7 de abril de 2012

The Wall


Encostou as costas suadas à parede fria. Nem assim conseguia a imobilidade de que precisava. O gelo cristalizado nas rochas tornava-as escorregadias e ele deslizava. Precisava de parar. Precisava de sentir que podia parar e continuar. Tinha passado os últimos tempos de que tinha memória a andar ao longo do muro. Não sabia quando tinha começado. Já não sabia se iria acabar. Já só queria saber que era possível parar e voltar a andar. Coisas simples, para qualquer pessoa. Aquela não era uma situação simples.

Tinha começado por andar, com os pés enterrados na neve, com a neve tornada gelo, com o gelo tornado pés, cada vez mais pesados, ao longo de milhas e milhas. Andou de dia e de noite. Não precisava de luz, o muro acompanhava-o à esquerda e ele só tinha de o seguir. De noite, brilhava o gelo e continuava a fazer sombra. Um dia, muitos dias depois, não havia tempo por ali, percebeu que talvez não tivesse fim. E que teria de voltar para trás, todos os dias que andara, todas as noites, e recomeçar. Andar em sentido contrário, com o muro agora à sua direita, até os pés enterrados na neve serem gelo, até a distância ser tão grande que já a primavera derrete a neve e os pés vão ficando mais soltos, até sentir a sombra do muro como um alívio e não o peso que o tinha esmagado tantos dias e tantas noites.

Não encontrou o fim do muro. Encontrou o tempo, como encontraria para qualquer direção em que andasse. Sentou-se à sombra, encostou as costas às rochas ainda frias, mas já não geladas, fios de água a corer nas frestas, ervas a despontar aqui e ali. Não encontrara uma falha. Uma porta. Uma entrada, uma passagem. Começava a pensar como viveria se tivesse de ficar para sempre daquele lado. Nem sabia quanto era para sempre, tinha aprendido a medir tudo em distância. Daquele lado não havia para onde ir. Era o fim do mundo. Só lhe restava o caminho ao longo do muro. Tão alto que nada o conseguiria ajudar a subir.

Seria mais fácil se não a ouvisse do outro lado. Agora que encontrara o lugar do sol, ouvia-a. As gargalhadas límpidas ecoavam e vibravam no muro, vibravam dentro dele.  Fechava os olhos e conseguia vê-la, a memória da pele fresca, os cabelos em desalinho, os olhos ávidos de vida, o sorriso cheio de luz. Por vezes, achava que conseguia cheirá-la, mas não acreditava que o cheiro dela pudesse passar as pedras. Nada passava as pedras. Sentia-a do outro lado e isso dava-lhe ânimo. Quando não lhe dava desespero. Quando não passava horas a gritar até perder a voz, na esperança de que ela o ouvisse, de que a sua voz passasse a pedra, de que a sua vontade fosse mais forte do que o muro que demoraram centenas de anos a construir para deixar de fora quem não tinha o direito de estar dentro. Mas sabia que ela não o ouvia. Não interrompia as gargalhadas. Não lhe devolvia uma palavra. Teria feito diferença se conseguissem falar? Tornava a impossibilidade de sair dali menos penosa? Tinha a certeza de que sim, menos quando o desespero o invadia e sabia que nada, nunca, ninguém o salvaria da solidão. 

RD, 07.04.2012