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sexta-feira, 16 de fevereiro de 2024

Este podia ser um texto contra o patriarcado. Mas é uma ode ao amor. E à falta de modéstia.

Hoje, num país em que tive de me cobrir em nome da modéstia, percebi algumas coisas que me têm escapado há muito tempo. Taparam-me o cabelo, não a capacidade de pensar. Neste país, as mulheres não têm direitos. Parece-nos extremado, difícil de compreender. E no entanto, também esta semana, ouvi um senador norte americano explicar calmamente por que motivo as mulheres deviam deixar de votar. Land of the free. Andamos há séculos a tentar evadir o controlo de uma sociedade que nos acha imprevisíveis, incontroláveis, um pouco menos que loucas, um pouco menos do que bruxas. As mulheres que, como eu, cresceram em democracia, em paz, numa parte do mundo dita desenvolvida, tomaram como garantido os direitos de votar, de ter uma opinião, de destapar o corpo como e quando entendemos. A consciência de que estes direitos são tão frágeis e de que voltam às agendas quando menos esperamos tem-me perturbado cada vez mais.

E daqui para o amor? O salto é mais pequeno do que parece. Tenho deixado para trás na vida muitas tentativas de controlo que só agora tomaram forma na minha cabeça e se tornaram aparentes. Saí muitas vezes sem saber exatamente porque saía, só sabia que não podia continuar ali. Homens que me dão menos porque querem controlar as minhas expetativas. Homens que me mantiveram numa redoma dourada, com amor a conta gotas, não fosse eu ter ideias. Homens que nunca reconheceram a minha capacidade para, sozinha, definir as minhas fronteiras e ser eu a controlar as minhas expetativas. Homens que, em nome da sua liberdade, do medo de que eu os possa querer controlar, sentiram pouco, amaram pouco, arriscaram pouco. Homens que organizam a sua identidade em torno da falácia de que a sua liberdade é constantemente ameaçada pelas mulheres. Falácia tão grande que, na verdade, é melhor deixá-los viver assim sob pena de não terem mais nada que os estruture. Quem serão eles se não forem o homem que se recusa alimentar fantasias das descontroladas, das mulheres que querem sempre mais? Das mulheres que pressionam os homens para uma relação? Como se a relação não fosse uma necessidade humana, deles também. Mas é aqui o lugar do poder: de quem controla, não só o que sente, mas também o que o outro sente. Eles têm de se defender, erguer muralhas, construir fortalezas, dar-lhes amor a conta gotas para as manter por perto, mas não demasiado perto. Controlam as suas expetativas, controlam as delas. Controlam o poder.  Na nossa sociedade, não nos obrigam a tapar os cabelos. Obrigam-nos a tapar o que sentimos. É demasiado intenso, demasiado carente, demasiado qualquer coisa. Que se tape.

Li, ontem, num jornal de referência português, um artigo que afirmava ser o amor nocivo, porque nos faz passarmos a vida a adivinhar o que outro sente, a dissecar o que sentimos quando nos apaixonamos. Isto não é amor. Isto é uma imaturidade emocional generalizada, de quem acha que controla o que o outro sente, sem antes se preocupar em definir o que são as suas fronteiras, os seus desejos, o seu mundo interior. Isto é um exercício de poder, num tempo em que ele pode estar a sair dos seus lugares habituais de controlo. O amor não é tóxico, não é nocivo. Ego e posse são-no. O amor é água, bebemos para nos matar a sede, abusando das palavras de Saramago. 

Esta é uma sociedade perdida, a tentar redefinir papéis de género que mudaram e que querem ignorar o imperativo biológico: eles foram feitos para partir e espalhar a semente, nós fomos feitas para ficar e cuidar. Sem isso, a espécie humana teria perecido há milhares de anos. Ainda há homens (os tais senadores num dos países mais desenvolvidos do mundo) que acham que a espécie humana vai perecer porque as mulheres parecem recusar agora o papel de ficar e cuidar das crias. Não percebem que as mulheres não rejeitaram as crias. As mulheres recusam que lhes censurem a vontade, as expetativas, a capacidade de definirem as suas fronteiras. Recusam o papel de descontroladas, de quase loucas, de quase bruxas. De quase santas. De terem de ser isto ou aquilo. De terem de fingir que não sentem, que sentem pouco, que sentem no formato das gavetas que abrem e fecham, para que eles não se sintam ameaçados. Um homem que recebe um mimo sem regras, fora de horas, fora do intervalo aceitável da comunicação, sente-se tão acossado como um homem que vê uns cabelos descobertos noutras partes do mundo. Falta de modéstia. Como ousam mostrar o que sentem? Como ousam perturbar a ordem de um mundo controlado, com as suas emoções, com a sua generosidade desmedida, não solicitada? Como ousam querer assumir o controlo das suas fronteiras?

Se passar o dia de cabelos cobertos serviu para perceber tudo o que me tentam obrigar a tapar, já valeu a pena. Vou ter de aceitar que ainda não será no meu tempo de vida que as mulheres poderão viver fora das regras impostas por uma sociedade que tem de proteger os homens de tudo o que os acossa, distrai, ameaça, excita. Mas vi as fronteiras que me impõem e, apesar de tudo, consigo ter mais espaço de intervenção se souber onde estão. O que ignoramos controla-nos muito mais. 

Há tanto tempo a tentar perceber o que é o amor e hoje pensei: talvez seja isto. Um homem que não esconde os seus medos por trás do medo das minhas expetativas. Um homem que me diz: o meu imperativo biológico manda-me partir, mas tu só me dás vontade de ficar. E entre precisar de ir e querer ficar, sinto-me perdido, mas aceito ficar perdido, contigo. Um homem que me diga: estas são as minhas fronteiras. Respeita-as e eu respeito as tuas. Um homem que me diga que eu sou água. E eu, mulher que sempre teve de viver com esta necessidade de cuidar, mas também de partir, talvez lhe consiga dizer o mesmo: as expetativas são minhas, sou responsável por elas. O que tu sentes quando me vês sentir muito é um problema teu, não me peças que o esconda. Se eu precisar de sentir, sinto. Se precisar de partir, parto. Não tapo mais os cabelos. 


RD, 14.02.2024 

quinta-feira, 29 de junho de 2017

E se Eva tivesse comido a maçã sozinha?


Imaginemos assim: o Adão, primeiro homem e responsável genético pelo medo que os seus descendentes masculinos lhe herdaram, hesitava. Já sabemos que foi assim. A maçã, redondinha, ali na árvore, um mundo inteiro por descobrir ou o conforto daquele paraíso sem nada por inventar? O dilema do Adão é um falso dilema. A sua escolha é a de sempre e eterna. A segurança do que está feito, de uma vida sem imprevistos, disfarçada de uma responsabilidade enorme, com a desculpa da obediência a deus, com a desculpa do “eu tenho de manter isto a funcionar, que é para isso que me criaram”. 

Adão não tem dúvidas. Adão gosta de olhar para a maçã, mas não precisa de lhe tocar. O primeiro homem aprendeu já a arte segura da fantasia. Quando se aborrece com a falta de imprevisto e acha que o paraíso lhe corta a possibilidade de exercer aventura e guerra, imagina, sentado à sombra. Cheira as maçãs. Reinventa-se nesses momentos de sonolência e sonha-se Adão conquistador de terras, mares e mulheres. Às vezes é atrevido na imaginação e assusta-se. Até criou um mecanismo para ter a certeza de que não se perde na fantasia. Bate com um pauzinho na perna. Acorda-se e volta a apreciar a magnitude das suas graças. Toma um banho no rio frio e agradece ao senhor. Que vida magnífica. Até uma janela para o mundo lhe foi dada, na forma daquela maçã.
Mas deixemos o Adão, que não é ele que nos interessa. Sabemos a sua história, sabemos sempre a sua história. 

Olhemos para a Eva, a nossa esperança de sairmos dali e de nos fazermos ao mundo. Eva nasceu para criar. Ela não quer conhecer o que deus conhece. Ela quer criar, como deus criou. Ela é a deusa subjugada por um deus que a quer obediente, a reproduzir-se em filhos fratricidas, culpada para sempre de ter iniciado o movimento daquilo que não podia continuar parado. Eva não podia ficar parada, é uma impossibilidade bíblica. Teriam vivido felizes para sempre e a história divina acabava aí. Deus precisa de movimento, precisa que a história continue e não admite que o seu paraíso, tão bonito e cheio de ordem, falha na possibilidade de evolução. Falha no excesso de contentamento. Falha da mesma forma que tudo o que é perfeito falha: está acabado, traz em si a sua própria destruição. 

Criou-a a ela diferente, com a esperança que ela o redima. E vive deus, esse sim, um dilema. Sabe que, se a subjuga, o mundo acabou. Sabe que, se a deixa ir, o caos reina e um dia questionarão se foi ele que o permitiu, ou, deus nos livre, se existirá. Sabe que ela tem o que é preciso para criar movimento e evolução. Sabe que não precisa de fazer nada para decidir, que, afinal, já decidiu quando a permitiu assim, cheia de força criadora. Uma rival, talvez. Alguém que não lhe obedece, se calhar. E a única esperança de não ficar, ele próprio, preso naquela sua criação que lhe tinha parecido uma ideia tão boa.

Eva não tem dilemas e não precisa da cobra. A nossa Eva não é mulher de se desculpar com animais que falam. Eva quer ir. E o que ela quer é a realidade. Não é a fantasia do Adão. Sente alguma ternura quando o vê assim, tão confortável, a olhar para a maçã. É um querido, o Adão. Pode-se confiar nele para nunca sair dali. E isso não pode deixar de provocar ternura. Quantas mulheres não vão chorar a vida inteira por um Adão? Podemos dizer que Eva não dá valor ao que tem? Dá. Ela sabe o que tem e sabe que vai sentir falta do Adão. Mas ficar ali é uma impossibilidade. Mais vale deitar-se à sombra da árvore do pecado e deixar-se morrer. É igual. Os dias serão todos iguais e a perfeição que não lhe dá a ela escolhas, nem possibilidade de criar, matam-na por dentro de qualquer maneira.

No fundo, só lhe resta decidir se quer ir sozinha ou se quer convencer o Adão. Sabe o que acontece se for com ele. Afinal, toda a gente conhece a história. Para sempre culpada, para sempre subjugada por ser considerada perigosa para a ordem. Demorará milhares – milhões? – de anos até a deixarem ser independente, sempre preocupados com o seu caráter volátil.  Sabe que passará aos filhos o património genético de um Adão obediente e grato a deus, o que tem o seu valor. 

Não sabe o que acontecerá se for sozinha. De quem será o património genético dos futuros homens? Talvez do mais forte que encontrar. Todas as mulheres carregam consigo esta responsabilidade. E as que não carregam, talvez sejam filhas de Adão. Os genes que passam aos filhos. 

A nossa Eva come a maçã da árvore do conhecimento e vai-se embora. O Adão estava a tomar banho no rio e não deu por nada. O seu mundo também vai mudar e vai ter de adaptar-se a um paraíso em que não está inteiro, eterna metade, a gozar o esplendor eterno. Talvez deus lhe dê outra fêmea, para garantir a continuidade da espécie, como agradecimento pela piedade que demonstrou. Talvez Adão passe a fantasiar com Eva quando olhar para a maçã.

Eva tem o mundo pela frente. Cruel, duro, sem conforto nem previsibilidade. Mas sem pecado original. Um mundo em que não tem a culpa dos homens e de deus nos ombros. Tem apenas as consequências dos seus atos no dia a dia. Eva quer esta realidade, que a fere, que a derruba vezes sem conta, mas que a faz sentir. Eva quer o potencial de criar uma nova ordem e lá vai ela. Mesmo que no fim tenha sido sobretudo caos, mesmo que o que criou seja infinitamente inferior ao que deixou. Não assumiu a culpa dos outros e não se deixou morrer antes de tempo. 

Se pensarmos em realidades paralelas, talvez todas as escolhas tenham existido e nós sejamos agora filhos de todos, dos que ficaram, dos que partiram e dos que partiram sozinhos. Eu quero ser filha da Eva que partiu sozinha. Não quero a herança da pecadora que existe para desculpar os homens das suas decisões e da falta delas. Quero ser a filha da que se espatifou toda, mas que só aceitou a culpa que é sua e das escolhas que faz. Não me deem como ancestral a sedutora. Deem-me a guerreira, que eu preciso dela quase todos os dias.


PS: Este texto apresenta várias imperfeições teológicas, filosóficas e científicas. É assim mesmo.

RD, 29.06.2017

quinta-feira, 24 de setembro de 2015

Dos amores enjeitados


... não reza a história. Dos trágicos, sim. Olhos furados, filhos esventrados, ele mata-se, ela mata-se, afinal foi engano, ainda assim estão os dois mortos.
Mas os enjeitados, para onde vão?

Discutimos algumas possibilidades, lembras-te? Quando ainda acreditávamos que talvez pudesse ser. Que, se nos esforçássemos muito e pensássemos bem e tivéssemos imaginação, encontraríamos o como de o nosso amor ser. É o que nós fazemos, todos os dias: encontramos soluções. Como não havíamos de encontrar uma para o nosso amor, sem o enjeitar? Talvez não te estivesses a esforçar o suficiente. Talvez eu não me estivesse a esforçar o suficiente. Assim, as culpas, à vez, a iludir o que mais tarde acabámos por aceitar: o nosso amor não tinha lugar. Não podia ser. Era indesejado. Era despropositado. Era irregular. Ninguém o queria. Nós não o queríamos.

O que fazer a um amor cheio de vida, todo potência, que ainda não sabe andar, não sabe ser, não é desejado? 
Abandoná-lo à beira da estrada e esperar que o levem? Deixá-lo morrer à fome? Sublimá-lo numa solução poética imaginada com amor para acabar com o amor?
Porque, dos muitos erros de cálculo que cometemos, esse foi o que nos continua a perseguir: não imaginámos que ele pudesse existir para além da nossa vontade. Que pudesse ser sem nós.
Cometemos todas as ousadias que podíamos. Dissemos-lhe: vai-te embora. Não te queremos. Conseguimos viver sem ti. Virámos as costas e afastámo-nos devagarinho, um pé pousado devagarinho à frente do outro para não ouvirmos os nossos passos. Como se o eco dos nossos passos nos pudesse ligar ainda, um fio azul de som, esticado, cada vez mais esticado, mas sempre a indicar o caminho.

Imaginas tamanha temeridade? Eu sei que sim. Pagas por ela todos os dias, como eu.
Nunca mais viver com os dois pés do mesmo lado. Nunca mais estar inteiro em sítio algum. A exigir a tudo e a todos a correção permanente, a não aceitar erros de ninguém.
Como podemos? Se vivemos na fratura do que fizemos. Se escolhemos fingir que a melhor parte de nós não vive. Como podemos aceitar mais falhas sem ruir? Tudo tem de estar sempre inteiro à nossa volta, condenados à correção permanente dos erros dos outros, dos nossos pequenos erros. Comparado com este, todos os nossos erros são pequenos. Não podemos. 

Anos depois, continuamos sem conseguir responder: para onde vão os amores enjeitados? Para o limbo dos amores, à espera que um dia nos  ultrapassemos, sejamos maiores do que somos e o resgatemos? E os que nunca foram resgatados? Continuarão lá à espera do tiro misericordioso? Cheios de si, tanto amor, nem percebem que ninguém os quer. 
Aqui, onde estou, sei o que pagámos. Não sei o que ainda pagaremos, mas sei que é para nós pior viver sem ele do que para ele viver sem nós. 

RD,  24.09.2015

domingo, 15 de setembro de 2013

Somos as palavras que dizemos

A um amigo que me fez adormecer a pensar na importância das palavras

Somos as palavras que dizemos. Se não ficam tatuadas na pele, são a pele que toca os outros, involuntariamente ou com premeditação.

Somos as palavras que escolhemos. Não usamos todos as mesmas palavras para recebermos quem nos faz falta. Não usamos todos as mesmas palavras para nos despedirmos de quem trazemos dentro de nós. Há quem evite com superstição o adeus. Eu gosto do adeus, mesmo que seja até amanhã. Adeus não é definitivo, é um aceito que te vais embora agora embora quisesse que não fosses nunca, mas sei que amanhã estamos juntos outras vez e que a cada vez que dizes adeus eu morro um pouco. Uma palavra com três frases lá dentro e tantos anos para aprender a dizer adeus sem morrer completamente. É tão bom morrer um pouco, uma dor com prazer à mistura.

Há quem dê pouca atenção às palavras que usa, como há quem não repare na pele que veste. E no entanto, as palavras que escolhemos têm um peso tão grande que, se as pesássemos a cada vez, deixávamos de ser capazes de falar. Não podemos gaguejar a cada palavra. Mas alguma atenção às palavras faz diferença na forma vivemos. O difícil equilíbrio entre a despreocupação e o cuidado necessários.

Há quem se resguarde de usar palavras, com a desculpa do medo ou de não as saber usar, ou de não estar habituado. Sempre achei sintoma de alguma pobreza emocional, este medo. Se não sabemos dizer o que sentimos, se não o nomeamos, como conhecemos a complexidade do que são as nossas emoções e sentimentos? Teremos medo de percebermos que, afinal, a falta de palavras corresponde a uma miséria de emoções nunca vividas, mal sentidas, enjeitadas, que nem a nome tiveram direito? Amo-te. Não é preciso dizê-lo, tu sabes o que eu sinto. Sei? Sabe-lo-ás tu? O que é amar? Amar como? Amar porquê? E amar para quê? 

Tenho aprendido com a vida que, pelos meus grandes amigos, os pilares da minha existência, é amor que sinto. Um amor não romântico, não erótico, não familiar. Um amor de amigos. Não é o amo-te que os adolescentes agora usam para tudo, sobretudo para os maiores amigos acabados de conhecer. Este fosso entre uma geração que não diz amo-te à pessoa com quem acorda na cama todos os dias porque não é necessário e os que dizem amo-te até a palavra perder sentido. Vai esvaziar-se e muitos vão perder a oportunidade de a usar. Para os tais do medo das palavras, os da pobreza emocional, talvez seja um alívio serem isentados de dizer amo-te pela desvalorização da palavra. E naquele deserto de emoções, a única que podia ser nomeada e que servia para identificar tudo o que se assemelhasse a um sentimento forte e potencialmente perigoso, seca e tudo passa a ser terra de ninguém. Não te digo que te amo porque amo-te já não quer dizer nada.

Há quem desconheça também o poder erótico das palavras. Dizem que para os homens as imagens são mais sugestivas; para as mulheres são as palavras. Um Quero-te. Um Desejo-te. Um Quero tocar-te. Um Quero sentir-te. Ou até um Já te comia. Afinal, a linguagem do desejo não tem de ser sofisticada. Não o dizer e esperar que uma mulher o adivinhe pelas feromonas ou por mais evidentes sinais físicos de desejo é dispensar uma intensidade na relação que só as palavras permitem. As palavras preparam a pele para o amor, acariciam-na. É com palavras que os dedos se inquietam de vontade de tocar, que o corpo antecipa o prazer.

As palavras são a epiderme de quem somos. Nas palavras que escolhemos para falar dos nossos afetos aos nossos amigos, do desejo aos desejados, da conversa sem interesse aos estranhos, está marcada a nossa impressão única, uma escolha vocabular que é pessoal e intransmissível, em combinações de frases que só nós fazemos, ainda que partilhemos a mesma língua, o mesmo grupo, o mesmo bairro. Há palavras que são só nossas. Nem que seja as não ditas. E se assumirmos a intenção com que as usamos corremos o risco de uma honestidade pouco adequada aos mais impressionáveis. Corremos o risco de nomear o que tem nome, de encontrarmos palavras adequadas, outras desastradas, outras mágicas, que nos abrem o outro por inteiro.

Encontramos fórmulas impessoais que nos isentam de marca própria. Dizia-me um amigo, há pouco tempo, numa mensagem em inglês: beijo! Orgulhoso que estava de saber despedir-se em português e por me poder assim surpreender, ficou decepcionado quando lhe expliquei que beijo era íntimo. Que dos amigos nos despedimos com beijinhos. Small kisses? Não. Isso podem ser pequenos beijos em direção a... Forte carga erótica tem esse small. Little kisses. Pequenos, na ponta dos lábios, sem tocar a cara, pelo menos certamente sem a molhar. Sim, porque nós, portugueses, que somos muito afetuosos ou gostamos de acreditar que o somos, beijamos toda a gente desta forma asséptica, contida. Beijinhos. Agora, felizmente, encontrámos a formula inócua para que ninguém saiba como os queremos beijar: bjs. Podem ser os beijinhos de tia velhinha e murcha. Podem ser beijos de amizade cheios de saudade. Podem ser beijos lambidos. E na formula inócua que serve de todos para todos, bjs pode ser o que cada um quiser, o que não deixa de ser libertador. Posso mandar beijos-lambidelas disfarçados de beijos inocentes, tal como escondo a pele à frente de quem não me posso despir.  Beijo-te até ficar surda (li isto não sei onde).


Não precisamos de tatuar as palavras na pele. Elas são a nossa pele.

RD, 15.09.2013

sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

A montanha


Encostas-te à pedra. Parece-te absurdo que ali, onde só vês campos verdes e a sombra da montanha, o mar tenha chegado para suavizar a pedra a pensar em ti. Sabendo que um dia precisarias de ali repousar. E no entanto, sabes que assim foi. E tão bem o fez que não te magoa as costas quando te encostas, não te tapa o sol quando precisas de te aquecer, não o deixa passar quando fustiga a pedra, não deixa que o vento te perturbe e só a brisa suave te acaricia os cabelos e os ombros.

Não precisas de sair dali. Tens tudo. Tudo se suavizou para preparar a tua vinda. As rosas silvestres que caem da mata cobrem-se de ervas para libertar aos poucos o aroma que, intenso, te seria insuportável. Os animais mal tocam o chão e olham-te de longe, na esperança que um dia suportes a sua presença. Nada te incomoda. Tudo está suspenso. A vida vem até ti. A água vem até ti e é fresca e pura e o riacho sabe conduzi-la devagar até aos teus pés. Demora o tempo necessário para o sol cortar o frio da neve nos picos. E o que sentes na ponta dos dedos dos pés é uma carícia tão suave, tão à temperatura da tua pele, que podias bem não o sentir. Sentes se quiseres.

Eu vim até ti. E só consigo olhar para os teus olhos enormes, perdidos, e limpar as lágrimas que não param de cair. Faço-te perguntas. Passo o dia a fazer-te as perguntas que, de noite, aperfeiçoo na minha cabeça. Tenho a certeza que não sei fazer-te as perguntas certas ou já terias encontrado a resposta. Tenho a certeza de que da minha incapacidade de te perguntar o que importa resulta o que tu não sabes. Nada te pesa. Nada te falta. Tudo se preparou para ti. Tudo te espera. Tudo quer que tu fiques. Tens tudo o que precisas e eu estou aqui e seguro-te na mão. E no entanto. Choras todo o dia encostada à pedra a que te afeiçoaste mais do que a mim. Parece que as duas partilham de uma qualquer natureza do que é, do que sempre foi, e do que, apesar do absurdo, está no nosso caminho e é intorneável.

Parece-me que, se for embora, não notarás a diferença. Suspeito que só eu preciso da resposta que continuo a pedir-te. Nada parece conseguir mudar a tua necessidade de te encostares à pedra e chorares. Olhas para cima. Olhas a montanha. Sei que tenho de te perguntar sobre a montanha e tento encontrar as perguntas certas. Sabes que não precisas de a subir não sabes? Sei. Sabes que nada está preparado para ti naquela montanha? Sei. Sabes que vais sofrer, cair, esfolar-te, partir-te, escorregar, perder as forças? Sei, sei, sei, sei, sei, sei. Tens de ir? Tenho. Porque choras? Porque não sei o que faço aqui. E na montanha, saberás? Não sei. É por isso que tenho de ir. Quando lá chegar, saberei.

Levantas-te e segues. E afinal eu tinha razão. Das minhas perguntas erradas corriam as tuas lágrimas. Da minha incapacidade de te fazer as perguntas certas, a tua paragem. De compreendermos os dois o que antes de perguntar não sabíamos, a tua ida.  

RD, 11.01.2013

quinta-feira, 22 de novembro de 2012

Se um dia te falta a vontade


Os homens esperam-te à porta das tendas. Querem lutar. Precisam de lutar. Tal como tu precisaste, todos os dias, de manhã ao pôr do sol. Só a noite te fez pousar as armas, durante anos. Lutaste ao sol e à chuva, mas nem os sentias. O furor da luta, a morte dos outros cujas caras já esqueceste, a tua espada enterrada nas cabeças, nos pulmões, nos ossos dos outros, tão bravos como tu. Só para depois a voltares a desenterrar e continuares a tua ceifa. Nunca mataste pelo gosto de matar. Mataste pela honra, pelo teu reino, pelos teus homens, pela defesa das tuas mulheres. Nunca mataste por desporto. Mataste porque és um herói e os heróis matam. Lutaste porque nasceste a lutar e não te ensinaram outra arte a não ser essa, a de ganhar batalhas. Também as perdeste e se nunca te feriram, levaram os teus companheiros, levaram o teu orgulho de herói, mancharam a tua reputação de invencível. Mas voltaste sempre, na madrugada seguinte, a pegar no escudo que os deuses forjaram para te proteger. Na espada que o teu pai te deu quando ainda não tinhas tamanho para pegar nela. Filho de reis, amado dos deuses. Não escolheste as tuas lutas. Os problemas têm de ser resolvidos.

Mas hoje perdeste a vontade de lutar. Dizes que foi a consciência da tua morte próxima, pela voz da tua mãe. Dizes que foi a afronta de quem defendias que te impede de lutar. Dizes que não podes honrar com as tuas armas um rei que não te respeita. Dizes que a levaram do teu leito e que por isso não lutas.

Mas a verdade, tu sabes qual é. Perdeste a vontade. Percebeste que lutas e que não és tu que escolhes as tuas lutas. Não escolheste a tua vida. Percebeste que as lutas dos outros não são as tuas. Percebeste que podes ser invencível e ainda assim a guerra não acabará. Percebeste que perdeste o altar onde depositar os despojos das tuas vitórias. Se não a ela, a quem? Sempre os depositaste no altar do amor e agora pedem-te que o faças no altar da morte. Matar pela morte não te dá vontade de lutar.

Perdeste a vontade porque fizeste perguntas. Continuar para quê? Fizeste a única pergunta não permitida a um herói: e se eu parar? E percebes que é indiferente. Se parares a guerra não é ganha. E isso que te interessa agora? Heitor ainda vivo, as muralhas de Tróia intactas e tu vivo para morrer noutra guerra menos cantada. Que diferença? A glória? Essa é a do futuro, é a que os outros cantam, é a que faz sonhar os pequenos heróis por vir. A ti, a glória futura, hoje, que diferença te faz? Saber o teu nome nunca esquecido não te faz menos sozinho aí onde estás.

E ainda não sabes que o levarão também a ele, o teu companheiro. E que lutarás por amor e pela morte e que os dois, amor e morte, serão um só no momento em que decidires a vitória daqueles que já não queres defender, de cujos futuros te alheias. Ainda não sabes que os deuses, quando te veem questionar o destino que escolheram para ti, são capazes de esquemas rapaces. Perderam a tua vontade, mas precisam da tua força. Lutarás sem vontade.

Lutarás ainda, só tu e a tua dor. Destruirás e a tua destruição abrirá a grande brecha nos muros de Tróia. Mas já não o fazes por Tróia, não o fazes pela tua mãe, não o fazes pelos teus que te seguem, não o fazes por ela, que voltará ao teu leito. Só o fazes por dor. Não por vontade. 

RD, 22.11.2012