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sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

As mães têm sempre razão


As mães têm sempre razão. Vemos o ar descrente com que os nossos filhos olham para nós quando lhes explicamos o perigo do que querem fazer e sabemos. Sabemos que as nossas mães tiveram sempre razão. Mesmo que os desígnios delas permaneçam insondáveis, tocamos a percepção de uma sabedoria maior, feita do conhecimento da dor, e que nos quer preservar dela. E que sabe sempre o que é melhor para nós, mesmo que pareça contrário ao nosso projecto de vida. 
Está determinado que a evolução se faça assim: crescemos a precisar de nos distanciarmos, de construirmos o nosso próprio projecto e às vezes é tão difícil percebermos que projecto é esse, que só o conseguimos construir na oposição ao que esperavam de nós. A mudança pode ser evolução tranquila, só medida em séculos ou numa pequena alteração na organização familiar, ou pode ser revolução inesperada, como se as duas tivessem a mesma raiz e revolução fosse evolução redobrada. Como se evoluir e revoltar-se não fossem afinal movimentos distintos. Com a constante de se fazerem a partir ou contra um mesmo ponto de referência, neste caso, a mãe. 
Ela olhou para nós com a atenção que as mães olham, durante horas, dias, meses, anos de um calendário distante resumido numa palavra: infância. Conhece-nos os sinais na pele, conhece-nos o desenho do cotovelo, o sítio em que o cabelo nasce na nuca. Lavou-os, secou-os, tratou-os durante anos. E, se ficou aliviada quando começámos a tratar da nossa própria higiene, por ter ganhado aqueles minutos para ela ou para as tarefas dela, começou a sentir o afastamento de um corpo que cresce e se esconde para crescer. Não deixou, no entanto, de nos olhar nos olhos. E de ver neles a alegria e de recear o momento em que a alegria acabe. Quem dera poder agora pôr-te um creme que te aliviasse, um penso rápido que tapasse o buraco. E de ver neles a dor, que a faz desviar o olhar, impotente, ela, a mãe, de quem a nossa vida dependeu e agora tem de aceitar que as mãos dela não a podem aliviar. Deixa-me massajar-te a barriga, talvez te alivie o coração.
A nossa mãe pode estranhar já não gostarmos daquela comida que nos confortava os dias especiais. Pode não compreender que tenhamos deixado de gostar de ir visitar as tias. Pode não reconhecer os confortos que escolhemos para nós como sendo reconfortantes. Mas conhece os nossos mecanismos mais profundos, aqueles que os outros demorarão a perceber. Conhece a nossa forma de lidar com a frustração. Conhece o ponto em que a nossa determinação acaba. Sabe até onde vai a nossa força. Determina com exactidão o momento em que estaremos cansados e rabugentos, em que não vale a pena argumentar, o ponto em que ela sempre perdeu e nós ganhámos o prémio de fazermos valer qualquer coisa pouco importante, mas que era apenas o exercício da nossa vontade. 
Mesmo que deixe de saber dialogar com isso, mesmo que não conheça os mecanismos para nos fazer lutar com a frustração, para nos insuflar mais um bocadinho de vontade quando ela acaba, mesmo que não encontre sequer as palavras para dizer: reconheço-te aí onde estás. É o mesmo sítio onde estavas quando caíste vezes sem conta da bicicleta. É o mesmo sítio onde estavas quando tentaste que as palavras sozinhas se explicassem para ti. É o mesmo sítio onde estavas quando os teus amigos te disseram que já não queriam ser teus amigos. Mesmo que fosse só por dez minutos. É o mesmo sítio onde estavas naquele dia em que vieste para casa e a dor já era nos teus olhos e não nos teus joelhos. Se elas encontrassem as palavras para nos dizer isto seria talvez demasiado fácil. Porque perguntaríamos imediatamente: Sabes? Então diz-me como faço para sair daqui. E elas já não podem saber tanto. Ou sabem, mas nós não as podemos ouvir. Seria demasiado fácil. Talvez as frases sejam as mesmas: não desistas, tu consegues. Não faz mal se falhares. Levanta-te e tenta de novo, tu vais conseguir. Não tenhas medo. Não te escondas. Eu estou aqui. Mesmo quando as mães deixam de estar ali. Estão dentro de nós os gestos que elas fizeram. Estão dentro de nós os buracos dos gestos que não souberam fazer. 
Talvez seja demasiado, talvez seja exagero freudiano dizer que nos marcam assim tanto. Afinal, nós crescemos para sermos auto-suficientes e essa auto-suficiência deve incluir a capacidade de olharmos para os nossos mecanismos de defesa e melhorá-los. Para os nossos mecanismos de entrega e melhorá-los. O determinismo maternal pode ser torneado pela nossa vontade em fazermos diferente daquilo que nos ensinaram. As marcas podem não determinar a nossa vida, tal como podemos decidir desobedecer à voz do GPS e tentar um caminho alternativo, lembrando-nos que já houve um tempo em que era natural encontrarmos o caminho sozinhos. Mas as marcas são isso mesmo, são aquilo que fica, o traço, o sinal visível, marca-se a pele, marca-se a alma, fixa-se, delimita-se. As marcas são também fronteiras, margens entre aquilo que nos deram e aquilo que procurámos.
Deixamos marcas. Vivemos com as marcas. Delimitamos o espaço, o que é nosso, roubado aos outros, negociado, conquistado. E passamos esta nossa maneira de entender as fronteiras para os nossos filhos. Como ontem, quando eu disse ao meu filho que era natural ele ainda não conseguir resolver tudo sozinho e que a mãe ficava contente por poder ajudá-lo. E se a mãe não o pudesse ajudar, que os dois podíamos ir à procura de quem nos ajudasse. Ele agradeceu- me com os olhos. E hei-de ensiná-lo a encontrar as palavras para o dizer, mais tarde, para o caso de haver quem não saiba ler-lhe nos olhos e precise que ele o diga: ainda bem que estás aí, ainda bem que não tenho de resolver tudo sozinho. Ela, a irmã, para não fugir às marcas de género nem tentar um discurso politicamente correcto que diz que todos somos iguais e a socialização é que nos diferencia, encontrou mais cedo as palavras para dizer o que sente: se eu estivesse mesmo no teu coração, compreendias como é que me sinto quando falas assim zangada comigo. Formulação incrível de uma criatura tão pequena para pedir à mãe que a tranquilize e lhe diga que a ama, mesmo quando se zanga com ela. Por enquanto, ainda sei as palavras. Perdi-as para a minha mãe, encontro-as todos os dias para os meus filhos. E um dia, sem mãe e com filhos em evolução ou em revolução, serei eu sozinha, a encontrar as palavras para falar comigo e para me dizer: tu consegues, eu estou aqui. Nunca estás sozinha.
As mães têm sempre razão.

RD, 23.02.2011

domingo, 19 de fevereiro de 2012

Do peso e da leveza


Ao chegar aos quarenta, apercebo-me de que, afinal, ainda não cresci nada. Talvez venha daí a minha recusa em querer ter quarenta, porque isso significa que vou ter ainda de aprender muito, e aprender dói sempre tanto e eu tenho tanto medo da dor, que preferia pensar que posso ficar sempre inocente e sempre pequenina e que nada me pesa.

Em véspera de crise de idade, fico sobretudo confusa por ter deixado de perceber o que é leve e o que é pesado na minha vida. E isso desorganiza-me tanto, que preciso de o disfarçar com grandes birras de diversos tipos, para esconder a causa real do mal-estar. Nunca achei que o mundo fosse a preto e branco e cedo me interessei pela natureza complexa das pessoas e das coisas. Quem gosta de ler acaba por fazê-lo mesmo sem o querer. Ninguém é totalmente mau e impossível de ser amado, como ninguém é puramente bom e digno da nossa profissão incondicional de fé. Somos isto e aquilo, bons e maus, feios e bonitos e há momentos em que somos o tudo ou o nada e nem sequer fizemos por isso.

Mas (hoje é com mas). Mas sempre separei na minha vida o que punha do lado do peso e o que punha do lado da leveza. Sem julgamentos de valor ou de beleza associados. Apenas aquilo que me era leve, que me fazia leve, separado do que me prende ao chão, do lastro que carrego.

Não era uma separação simples. Não se tratava de separar trabalho de férias, por exemplo. No trabalho, há momentos de extraordinária leveza, de pura criação, de grande gratificação. Nas férias, e apesar de viver para elas, há momentos de total sacrifício ao que esperam de nós, à cor que devemos ter, às horas de conversa banal que devemos aguentar. Mas (outro mas) era uma separação natural, essencial. O que consigo, torna-me leve. O que faço mal, pesa-me.

Neste momento, não sei e vou ter de o aprender até à próxima semana, porque não quero entrar nos quarenta tão despreparada. Consigo resolver problemas que achava que me fariam fugir e, no entanto só me pesa o que tive de fazer para o conseguir. Não consigo corresponder a expectativas que me disseram ter a meu respeito e sinto-me mais leve por isso. As minhas relações de amizade são a leveza de uma alegria descontraída, sem protocolo, e são uma obrigação de uma resposta sempre em falta. O meu país, a minha casa, a minha família são a leveza do que conheço, confio e faz parte de mim sem esforço. Mas são o peso da minha ausência, o que não faço porque não estou. Este país, esta casa, esta família são a leveza do que é novo e todos os dias diferente. E são o peso do que não tem a sustentação  do apoio de todos os que aqui não estão.

E nesta desorientação de pesos, vivo numa bipolaridade constante que me é estranha, porque tudo está fraturado e nada é inteiro. E não há leveza por metade. Nem meio peso.  E a divisão não pode ser artificial. Ou pode, mas não é minha. Talvez tenha de ir aceitando que nada é inteiro e que isso é a vida. Feita de meios pesos, de meias levezas. Pedaços de leveza que de repente ganham peso. Pacotes pesados que, por momentos, perdem a substância e me elevam. Se fosse pessimista, bastar-me-ia aceitar e dizer: eu já sabia que isto ia acontecer. Otimista que sou, vou ter de trabalhar muito para esta nova organização que se avizinha. Vou ter de aprender a insustentável leveza dos quarenta. 

RD, 19.02.2012

terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

Os pilares


Um dia, numa das muitas e belas dedicatórias que Saramago fez a Pilar, escreveu: A Pilar, minha casa. Ainda hoje me dói a beleza deste amor, numa fórmula tão pequena e tão pungente. Completa, perfeita. Para além do bonito que é dizermos a alguém que é a nossa casa, dizendo-lhe com isso que a nossa casa é onde o outro estiver e em mais nenhum sítio do mundo, há ainda o pilar e a casa.
Não vemos os pilares das nossas casas. E, no entanto, derrocavam sem eles. Os pilares são a fundação sobre a qual construímos o que somos. O que nos apoia, o que nos sustenta, o que há de mais profundo e resistente em nós.

Nada os abana, reconstruímos uma casa, deitamos as paredes abaixo, queremos tudo novo. Mas os pilares continuam lá. E tapamo-los com cimento ou betão ou lá o que se usa para fazer paredes. Vidros enormes, transparentes, que refletem o mundo lá fora e a nossa vida cá dentro. Pedras magníficas que parecem encerrar nos veios a vida da terra de onde foram extraídas. E os pilares sempre tapados.

Não passamos a mão pelos pilares para sentir a textura da madeira, o frio da pedra, o corte do vidro. Não nos encostamos a eles para descansar. Para isso temos o sofá, tão confortável, um modelo moderno, uma chaise longue, todos nós rebolados no conforto de almofadas, lambuzados em chocolates e filmes pagos sem sair de casa. E esquecemo-nos, por momentos, de que eles estão lá, os pilares.

Só se eles falharem lhes sentimos a falta. Não há estrutura que aguente. E nós vamos por ali abaixo com a pedra rachada, os vidros mágicos transformados em lâminas de sangue, a madeira em armas de arremesso, tudo cai em cima de nós e tudo se afunda connosco.

Os pilares estão lá. Silenciosos. São o que nos aguenta, quando achamos que tudo se afundou. São o que nos dá segurança para, aí sim, nos agarrarmos a eles e nos levantarmos e começarmos de novo. Só eles viram a queda, só eles sabem como ficamos quando somos entulho. E aguentam e continuam lá. Para começarmos de novo, para este esforço sempre renovado de fazer melhor, uma casa de palha, uma casa de paus, uma casa de tijolos. Com pilares.

Os meus são quatro, só conheço esta estrutura quadrangular. Confiança. Amor. Alegria. Discernimento. Sobre eles reconstruo a todas as vezes o edifício frágil que é a minha interioridade feita de belas arquiteturas, tortuosas, algumas, elegantes, outras, uma curva aérea do Niemeyer, uma linha pura do Siza, tudo dentro de mim quando quero ser mais leve e mais alta e maior. Porque tenho os meus pilares. Eles estão lá. Mesmo quando os tapo e os escondo, ou prefiro fingir que não preciso deles. E são pessoas, quatro, cada uma delas com a sua missão pesada de aguentar os meus exercícios cada vez mais loucos, cada vez mais altos. E aguentam, e eu cresço e não tenho medo da queda.

Eu sei que também sou um pilar para cada um deles. Se calhar, não o mesmo, se calhar não o que eles queriam. Mas sou a certeza de alguma coisa para alguém, e a certeza de uma coisa boa que o ajude a elevar-se, nem que seja sem tirar os pés do chão.

Aos meus pilares, a minha casa. 
RD, 07.02.2012

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

Texto lacunar


Falamos o texto das nossas vidas como quem faz um texto lacunar. Deixamos os espaços para os outros preencherem. Espaços curtos, limitados ao que está antes e ao que vem depois, como num exercício de adivinhação, muitas vezes cruel, porque as possibilidades raramente se reduzem a uma palavra certa, aquela que nós queremos ouvir. E se os outros erram, um traço por cima, 6 certos em 10, 4 errados, não é uma média má. A menos que aqueles 4 fossem em momentos em que a palavra certa teria salvado tudo. Em que um sim ou não em vez de um talvez teriam acabado um parágrafo.

Vivemos neste jogo de crueldade, como se capacidade de os outros adivinharem o que completa os nossos espaços em branco fosse o comprovativo do que sentem por nós, do quanto nos conhecem, do bem – ou mal – que nos querem. Quando, muitas vezes, o espaço que deixámos por preencher não os deixa fazer mais do que tentar acertar, numa tentativa já pouco convincente, na palavra que queremos ouvir.

Outras vezes, preenchemos nós os espaços. Dizem-nos “quero-te” e ouvimos “quero-te só a ti”. Dizem-nos “amo-te” e ouvimos “amo-te mais do que tudo”, dizem-nos “querida” e ouvimos “querida, quero-te”. Dizem-nos “podes contar comigo” e ouvimos “podes contar sempre comigo, em qualquer altura, para o que for”. Vivemos destes exercícios de completar o que os outros nos dizem, em vez de perguntar o que se segue. Ou de deixarmos os espaços limitados para os outros completarem, como se nunca confiássemos na capacidade que poderão ter de produzir uma frase inteira, um diálogo feito a dois, em que as perguntas são verdadeiras e as respostas totais, e não uma dança de ameaças subentendidas ou de chantagens emocionais veladas em palavras que esperam a resposta certa, a que queremos ouvir, a que só nós conseguimos produzir, numa relação que é, afinal, só connosco.

E talvez todo este esforço em deixar tão pouco espaço em branco para os outros seja apenas o medo de um “mas”. O “mas” poderá ser a palavra mais poderosa da nossa língua. Experimentem o exercício “quero-te, mas não é só a ti”; “amo-te, mas não tenho tempo”; “ia contigo a qualquer lugar do mundo, mas agora não posso”; “podes contar sempre comigo, mas hoje não”. O efeito destruidor de tudo o que foi dito antes é garantido. Nada sobrevive a um mas. Não podemos deixar, nas frases que servimos aos outros prontas a dizer, naquelas que adivinhamos, antecipamos, criamos condições para serem produzidas, o espaço para um mas. Mais vale começarmos nós pelo “mas”. “Mas não me queres?” “Quero-te, mas…” “Mas, o quê? Eu já te tinha dito mas, não me venhas agora repetir o mas.”

E este é o espaço dos outros dentro de nós. Lacunar. Entrelaçado com o espaço de outros, delimitado no que esperamos deles. E no que queremos que adivinhem, sem nunca termos de o dizer. E sem mas, afinal na nossa cabeça o amor dos outros por nós é sempre incondicional. Sobretudo quando fomos nós que o criámos.


RD, 02.02.2012