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sexta-feira, 16 de fevereiro de 2024

Este podia ser um texto contra o patriarcado. Mas é uma ode ao amor. E à falta de modéstia.

Hoje, num país em que tive de me cobrir em nome da modéstia, percebi algumas coisas que me têm escapado há muito tempo. Taparam-me o cabelo, não a capacidade de pensar. Neste país, as mulheres não têm direitos. Parece-nos extremado, difícil de compreender. E no entanto, também esta semana, ouvi um senador norte americano explicar calmamente por que motivo as mulheres deviam deixar de votar. Land of the free. Andamos há séculos a tentar evadir o controlo de uma sociedade que nos acha imprevisíveis, incontroláveis, um pouco menos que loucas, um pouco menos do que bruxas. As mulheres que, como eu, cresceram em democracia, em paz, numa parte do mundo dita desenvolvida, tomaram como garantido os direitos de votar, de ter uma opinião, de destapar o corpo como e quando entendemos. A consciência de que estes direitos são tão frágeis e de que voltam às agendas quando menos esperamos tem-me perturbado cada vez mais.

E daqui para o amor? O salto é mais pequeno do que parece. Tenho deixado para trás na vida muitas tentativas de controlo que só agora tomaram forma na minha cabeça e se tornaram aparentes. Saí muitas vezes sem saber exatamente porque saía, só sabia que não podia continuar ali. Homens que me dão menos porque querem controlar as minhas expetativas. Homens que me mantiveram numa redoma dourada, com amor a conta gotas, não fosse eu ter ideias. Homens que nunca reconheceram a minha capacidade para, sozinha, definir as minhas fronteiras e ser eu a controlar as minhas expetativas. Homens que, em nome da sua liberdade, do medo de que eu os possa querer controlar, sentiram pouco, amaram pouco, arriscaram pouco. Homens que organizam a sua identidade em torno da falácia de que a sua liberdade é constantemente ameaçada pelas mulheres. Falácia tão grande que, na verdade, é melhor deixá-los viver assim sob pena de não terem mais nada que os estruture. Quem serão eles se não forem o homem que se recusa alimentar fantasias das descontroladas, das mulheres que querem sempre mais? Das mulheres que pressionam os homens para uma relação? Como se a relação não fosse uma necessidade humana, deles também. Mas é aqui o lugar do poder: de quem controla, não só o que sente, mas também o que o outro sente. Eles têm de se defender, erguer muralhas, construir fortalezas, dar-lhes amor a conta gotas para as manter por perto, mas não demasiado perto. Controlam as suas expetativas, controlam as delas. Controlam o poder.  Na nossa sociedade, não nos obrigam a tapar os cabelos. Obrigam-nos a tapar o que sentimos. É demasiado intenso, demasiado carente, demasiado qualquer coisa. Que se tape.

Li, ontem, num jornal de referência português, um artigo que afirmava ser o amor nocivo, porque nos faz passarmos a vida a adivinhar o que outro sente, a dissecar o que sentimos quando nos apaixonamos. Isto não é amor. Isto é uma imaturidade emocional generalizada, de quem acha que controla o que o outro sente, sem antes se preocupar em definir o que são as suas fronteiras, os seus desejos, o seu mundo interior. Isto é um exercício de poder, num tempo em que ele pode estar a sair dos seus lugares habituais de controlo. O amor não é tóxico, não é nocivo. Ego e posse são-no. O amor é água, bebemos para nos matar a sede, abusando das palavras de Saramago. 

Esta é uma sociedade perdida, a tentar redefinir papéis de género que mudaram e que querem ignorar o imperativo biológico: eles foram feitos para partir e espalhar a semente, nós fomos feitas para ficar e cuidar. Sem isso, a espécie humana teria perecido há milhares de anos. Ainda há homens (os tais senadores num dos países mais desenvolvidos do mundo) que acham que a espécie humana vai perecer porque as mulheres parecem recusar agora o papel de ficar e cuidar das crias. Não percebem que as mulheres não rejeitaram as crias. As mulheres recusam que lhes censurem a vontade, as expetativas, a capacidade de definirem as suas fronteiras. Recusam o papel de descontroladas, de quase loucas, de quase bruxas. De quase santas. De terem de ser isto ou aquilo. De terem de fingir que não sentem, que sentem pouco, que sentem no formato das gavetas que abrem e fecham, para que eles não se sintam ameaçados. Um homem que recebe um mimo sem regras, fora de horas, fora do intervalo aceitável da comunicação, sente-se tão acossado como um homem que vê uns cabelos descobertos noutras partes do mundo. Falta de modéstia. Como ousam mostrar o que sentem? Como ousam perturbar a ordem de um mundo controlado, com as suas emoções, com a sua generosidade desmedida, não solicitada? Como ousam querer assumir o controlo das suas fronteiras?

Se passar o dia de cabelos cobertos serviu para perceber tudo o que me tentam obrigar a tapar, já valeu a pena. Vou ter de aceitar que ainda não será no meu tempo de vida que as mulheres poderão viver fora das regras impostas por uma sociedade que tem de proteger os homens de tudo o que os acossa, distrai, ameaça, excita. Mas vi as fronteiras que me impõem e, apesar de tudo, consigo ter mais espaço de intervenção se souber onde estão. O que ignoramos controla-nos muito mais. 

Há tanto tempo a tentar perceber o que é o amor e hoje pensei: talvez seja isto. Um homem que não esconde os seus medos por trás do medo das minhas expetativas. Um homem que me diz: o meu imperativo biológico manda-me partir, mas tu só me dás vontade de ficar. E entre precisar de ir e querer ficar, sinto-me perdido, mas aceito ficar perdido, contigo. Um homem que me diga: estas são as minhas fronteiras. Respeita-as e eu respeito as tuas. Um homem que me diga que eu sou água. E eu, mulher que sempre teve de viver com esta necessidade de cuidar, mas também de partir, talvez lhe consiga dizer o mesmo: as expetativas são minhas, sou responsável por elas. O que tu sentes quando me vês sentir muito é um problema teu, não me peças que o esconda. Se eu precisar de sentir, sinto. Se precisar de partir, parto. Não tapo mais os cabelos. 


RD, 14.02.2024