Os homens esperam-te à
porta das tendas. Querem lutar. Precisam de lutar. Tal como tu precisaste,
todos os dias, de manhã ao pôr do sol. Só a noite te fez pousar as armas,
durante anos. Lutaste ao sol e à chuva, mas nem os sentias. O furor da luta, a
morte dos outros cujas caras já esqueceste, a tua espada enterrada nas cabeças,
nos pulmões, nos ossos dos outros, tão bravos como tu. Só para depois a
voltares a desenterrar e continuares a tua ceifa. Nunca mataste pelo gosto de
matar. Mataste pela honra, pelo teu reino, pelos teus homens, pela defesa das
tuas mulheres. Nunca mataste por desporto. Mataste porque és um herói e os
heróis matam. Lutaste porque nasceste a lutar e não te ensinaram outra arte a
não ser essa, a de ganhar batalhas. Também as perdeste e se nunca te feriram,
levaram os teus companheiros, levaram o teu orgulho de herói, mancharam a tua
reputação de invencível. Mas voltaste sempre, na madrugada seguinte, a pegar no
escudo que os deuses forjaram para te proteger. Na espada que o teu pai te deu
quando ainda não tinhas tamanho para pegar nela. Filho de reis, amado dos
deuses. Não escolheste as tuas lutas. Os problemas têm de ser resolvidos.
Mas hoje perdeste a
vontade de lutar. Dizes que foi a consciência da tua morte próxima, pela voz da
tua mãe. Dizes que foi a afronta de quem defendias que te impede de lutar.
Dizes que não podes honrar com as tuas armas um rei que não te respeita. Dizes
que a levaram do teu leito e que por isso não lutas.
Mas a verdade, tu sabes
qual é. Perdeste a vontade. Percebeste que lutas e que não és tu que escolhes
as tuas lutas. Não escolheste a tua vida. Percebeste que as lutas dos outros
não são as tuas. Percebeste que podes ser invencível e ainda assim a guerra não
acabará. Percebeste que perdeste o altar onde depositar os despojos das tuas
vitórias. Se não a ela, a quem? Sempre os depositaste no altar do amor e agora
pedem-te que o faças no altar da morte. Matar pela morte não te dá vontade de
lutar.
Perdeste a vontade porque
fizeste perguntas. Continuar para quê? Fizeste a única pergunta não permitida a
um herói: e se eu parar? E percebes que é indiferente. Se parares a guerra não
é ganha. E isso que te interessa agora? Heitor ainda vivo, as muralhas de Tróia
intactas e tu vivo para morrer noutra guerra menos cantada. Que diferença? A
glória? Essa é a do futuro, é a que os outros cantam, é a que faz sonhar os
pequenos heróis por vir. A ti, a glória futura, hoje, que diferença te faz?
Saber o teu nome nunca esquecido não te faz menos sozinho aí onde estás.
E ainda não sabes que o
levarão também a ele, o teu companheiro. E que lutarás por amor e pela morte e
que os dois, amor e morte, serão um só no momento em que decidires a vitória daqueles que já
não queres defender, de cujos futuros te alheias. Ainda não sabes que os
deuses, quando te veem questionar o destino que escolheram para ti, são capazes
de esquemas rapaces. Perderam a tua vontade, mas precisam da tua força.
Lutarás sem vontade.
Lutarás ainda, só tu e a
tua dor. Destruirás e a tua destruição abrirá a grande brecha nos muros de
Tróia. Mas já não o fazes por Tróia, não o fazes pela tua mãe, não o fazes
pelos teus que te seguem, não o fazes por ela, que voltará ao teu leito. Só o
fazes por dor. Não por vontade.
RD, 22.11.2012