A um amigo que me fez adormecer a pensar na importância das palavras
Somos as palavras que dizemos. Se não
ficam tatuadas na pele, são a pele que toca os outros, involuntariamente ou com
premeditação.
Somos as palavras que escolhemos. Não
usamos todos as mesmas palavras para recebermos quem nos faz falta. Não usamos todos
as mesmas palavras para nos despedirmos de quem trazemos dentro de nós. Há quem
evite com superstição o adeus. Eu gosto do adeus, mesmo que seja até amanhã.
Adeus não é definitivo, é um aceito que
te vais embora agora embora quisesse que não fosses nunca, mas sei que amanhã
estamos juntos outras vez e que a cada vez que dizes adeus eu morro um pouco.
Uma palavra com três frases lá dentro e tantos anos para aprender a dizer adeus
sem morrer completamente. É tão bom morrer um pouco, uma dor com prazer à
mistura.
Há quem dê pouca atenção às palavras que
usa, como há quem não repare na pele que veste. E no entanto, as palavras que
escolhemos têm um peso tão grande que, se as pesássemos a cada vez, deixávamos
de ser capazes de falar. Não podemos gaguejar a cada palavra. Mas alguma
atenção às palavras faz diferença na forma vivemos. O difícil equilíbrio entre a
despreocupação e o cuidado necessários.
Há quem se resguarde de usar palavras, com
a desculpa do medo ou de não as saber usar, ou de não estar habituado. Sempre
achei sintoma de alguma pobreza emocional, este medo. Se não sabemos dizer o
que sentimos, se não o nomeamos, como conhecemos a complexidade do que são as
nossas emoções e sentimentos? Teremos medo de percebermos que, afinal, a falta
de palavras corresponde a uma miséria de emoções nunca vividas, mal sentidas,
enjeitadas, que nem a nome tiveram direito? Amo-te. Não é preciso dizê-lo, tu
sabes o que eu sinto. Sei? Sabe-lo-ás tu? O que é amar? Amar como? Amar porquê?
E amar para quê?
Tenho aprendido com a vida que, pelos meus grandes amigos, os
pilares da minha existência, é amor que sinto. Um amor não romântico, não
erótico, não familiar. Um amor de amigos. Não é o amo-te que os adolescentes
agora usam para tudo, sobretudo para os maiores amigos acabados de conhecer. Este
fosso entre uma geração que não diz amo-te à pessoa com quem acorda na cama
todos os dias porque não é necessário e os que dizem amo-te até a palavra
perder sentido. Vai esvaziar-se e muitos vão perder a oportunidade de a usar.
Para os tais do medo das palavras, os da pobreza emocional, talvez seja um
alívio serem isentados de dizer amo-te pela desvalorização da palavra. E
naquele deserto de emoções, a única que podia ser nomeada e que servia para
identificar tudo o que se assemelhasse a um sentimento forte e potencialmente
perigoso, seca e tudo passa a ser terra de ninguém. Não te digo que te amo
porque amo-te já não quer dizer nada.
Há quem desconheça também o poder erótico
das palavras. Dizem que para os homens as imagens são mais sugestivas; para as
mulheres são as palavras. Um Quero-te. Um Desejo-te. Um Quero tocar-te. Um
Quero sentir-te. Ou até um Já te comia. Afinal, a linguagem do desejo não tem
de ser sofisticada. Não o dizer e esperar que uma mulher o adivinhe pelas
feromonas ou por mais evidentes sinais físicos de desejo é dispensar uma
intensidade na relação que só as palavras permitem. As palavras preparam a pele
para o amor, acariciam-na. É com palavras que os dedos se inquietam de vontade
de tocar, que o corpo antecipa o prazer.
As palavras são a epiderme de quem somos.
Nas palavras que escolhemos para falar dos nossos afetos aos nossos amigos, do
desejo aos desejados, da conversa sem interesse aos estranhos, está marcada a
nossa impressão única, uma escolha vocabular que é pessoal e intransmissível,
em combinações de frases que só nós fazemos, ainda que partilhemos a mesma
língua, o mesmo grupo, o mesmo bairro. Há palavras que são só nossas. Nem que
seja as não ditas. E se assumirmos a intenção com que as usamos corremos o
risco de uma honestidade pouco adequada aos mais impressionáveis. Corremos o
risco de nomear o que tem nome, de encontrarmos palavras adequadas, outras
desastradas, outras mágicas, que nos abrem o outro por inteiro.
Encontramos fórmulas impessoais que nos isentam
de marca própria. Dizia-me um amigo, há pouco tempo, numa mensagem em inglês:
beijo! Orgulhoso que estava de saber despedir-se em português e por me poder
assim surpreender, ficou decepcionado quando lhe expliquei que beijo era
íntimo. Que dos amigos nos despedimos com beijinhos. Small kisses? Não. Isso
podem ser pequenos beijos em direção a... Forte carga erótica tem esse small.
Little kisses. Pequenos, na ponta dos lábios, sem tocar a cara, pelo menos
certamente sem a molhar. Sim, porque nós, portugueses, que somos muito
afetuosos ou gostamos de acreditar que o somos, beijamos toda a gente desta
forma asséptica, contida. Beijinhos. Agora, felizmente, encontrámos a formula
inócua para que ninguém saiba como os queremos beijar: bjs. Podem ser os
beijinhos de tia velhinha e murcha. Podem ser beijos de amizade cheios de
saudade. Podem ser beijos lambidos. E na formula inócua que serve de todos para
todos, bjs pode ser o que cada um quiser, o que não deixa de ser libertador.
Posso mandar beijos-lambidelas disfarçados de beijos inocentes, tal como escondo
a pele à frente de quem não me posso despir. Beijo-te até ficar surda (li isto não sei
onde).
Não precisamos de tatuar as palavras na
pele. Elas são a nossa pele.
RD, 15.09.2013