Número total de visualizações de páginas

domingo, 15 de setembro de 2013

Somos as palavras que dizemos

A um amigo que me fez adormecer a pensar na importância das palavras

Somos as palavras que dizemos. Se não ficam tatuadas na pele, são a pele que toca os outros, involuntariamente ou com premeditação.

Somos as palavras que escolhemos. Não usamos todos as mesmas palavras para recebermos quem nos faz falta. Não usamos todos as mesmas palavras para nos despedirmos de quem trazemos dentro de nós. Há quem evite com superstição o adeus. Eu gosto do adeus, mesmo que seja até amanhã. Adeus não é definitivo, é um aceito que te vais embora agora embora quisesse que não fosses nunca, mas sei que amanhã estamos juntos outras vez e que a cada vez que dizes adeus eu morro um pouco. Uma palavra com três frases lá dentro e tantos anos para aprender a dizer adeus sem morrer completamente. É tão bom morrer um pouco, uma dor com prazer à mistura.

Há quem dê pouca atenção às palavras que usa, como há quem não repare na pele que veste. E no entanto, as palavras que escolhemos têm um peso tão grande que, se as pesássemos a cada vez, deixávamos de ser capazes de falar. Não podemos gaguejar a cada palavra. Mas alguma atenção às palavras faz diferença na forma vivemos. O difícil equilíbrio entre a despreocupação e o cuidado necessários.

Há quem se resguarde de usar palavras, com a desculpa do medo ou de não as saber usar, ou de não estar habituado. Sempre achei sintoma de alguma pobreza emocional, este medo. Se não sabemos dizer o que sentimos, se não o nomeamos, como conhecemos a complexidade do que são as nossas emoções e sentimentos? Teremos medo de percebermos que, afinal, a falta de palavras corresponde a uma miséria de emoções nunca vividas, mal sentidas, enjeitadas, que nem a nome tiveram direito? Amo-te. Não é preciso dizê-lo, tu sabes o que eu sinto. Sei? Sabe-lo-ás tu? O que é amar? Amar como? Amar porquê? E amar para quê? 

Tenho aprendido com a vida que, pelos meus grandes amigos, os pilares da minha existência, é amor que sinto. Um amor não romântico, não erótico, não familiar. Um amor de amigos. Não é o amo-te que os adolescentes agora usam para tudo, sobretudo para os maiores amigos acabados de conhecer. Este fosso entre uma geração que não diz amo-te à pessoa com quem acorda na cama todos os dias porque não é necessário e os que dizem amo-te até a palavra perder sentido. Vai esvaziar-se e muitos vão perder a oportunidade de a usar. Para os tais do medo das palavras, os da pobreza emocional, talvez seja um alívio serem isentados de dizer amo-te pela desvalorização da palavra. E naquele deserto de emoções, a única que podia ser nomeada e que servia para identificar tudo o que se assemelhasse a um sentimento forte e potencialmente perigoso, seca e tudo passa a ser terra de ninguém. Não te digo que te amo porque amo-te já não quer dizer nada.

Há quem desconheça também o poder erótico das palavras. Dizem que para os homens as imagens são mais sugestivas; para as mulheres são as palavras. Um Quero-te. Um Desejo-te. Um Quero tocar-te. Um Quero sentir-te. Ou até um Já te comia. Afinal, a linguagem do desejo não tem de ser sofisticada. Não o dizer e esperar que uma mulher o adivinhe pelas feromonas ou por mais evidentes sinais físicos de desejo é dispensar uma intensidade na relação que só as palavras permitem. As palavras preparam a pele para o amor, acariciam-na. É com palavras que os dedos se inquietam de vontade de tocar, que o corpo antecipa o prazer.

As palavras são a epiderme de quem somos. Nas palavras que escolhemos para falar dos nossos afetos aos nossos amigos, do desejo aos desejados, da conversa sem interesse aos estranhos, está marcada a nossa impressão única, uma escolha vocabular que é pessoal e intransmissível, em combinações de frases que só nós fazemos, ainda que partilhemos a mesma língua, o mesmo grupo, o mesmo bairro. Há palavras que são só nossas. Nem que seja as não ditas. E se assumirmos a intenção com que as usamos corremos o risco de uma honestidade pouco adequada aos mais impressionáveis. Corremos o risco de nomear o que tem nome, de encontrarmos palavras adequadas, outras desastradas, outras mágicas, que nos abrem o outro por inteiro.

Encontramos fórmulas impessoais que nos isentam de marca própria. Dizia-me um amigo, há pouco tempo, numa mensagem em inglês: beijo! Orgulhoso que estava de saber despedir-se em português e por me poder assim surpreender, ficou decepcionado quando lhe expliquei que beijo era íntimo. Que dos amigos nos despedimos com beijinhos. Small kisses? Não. Isso podem ser pequenos beijos em direção a... Forte carga erótica tem esse small. Little kisses. Pequenos, na ponta dos lábios, sem tocar a cara, pelo menos certamente sem a molhar. Sim, porque nós, portugueses, que somos muito afetuosos ou gostamos de acreditar que o somos, beijamos toda a gente desta forma asséptica, contida. Beijinhos. Agora, felizmente, encontrámos a formula inócua para que ninguém saiba como os queremos beijar: bjs. Podem ser os beijinhos de tia velhinha e murcha. Podem ser beijos de amizade cheios de saudade. Podem ser beijos lambidos. E na formula inócua que serve de todos para todos, bjs pode ser o que cada um quiser, o que não deixa de ser libertador. Posso mandar beijos-lambidelas disfarçados de beijos inocentes, tal como escondo a pele à frente de quem não me posso despir.  Beijo-te até ficar surda (li isto não sei onde).


Não precisamos de tatuar as palavras na pele. Elas são a nossa pele.

RD, 15.09.2013

sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

A montanha


Encostas-te à pedra. Parece-te absurdo que ali, onde só vês campos verdes e a sombra da montanha, o mar tenha chegado para suavizar a pedra a pensar em ti. Sabendo que um dia precisarias de ali repousar. E no entanto, sabes que assim foi. E tão bem o fez que não te magoa as costas quando te encostas, não te tapa o sol quando precisas de te aquecer, não o deixa passar quando fustiga a pedra, não deixa que o vento te perturbe e só a brisa suave te acaricia os cabelos e os ombros.

Não precisas de sair dali. Tens tudo. Tudo se suavizou para preparar a tua vinda. As rosas silvestres que caem da mata cobrem-se de ervas para libertar aos poucos o aroma que, intenso, te seria insuportável. Os animais mal tocam o chão e olham-te de longe, na esperança que um dia suportes a sua presença. Nada te incomoda. Tudo está suspenso. A vida vem até ti. A água vem até ti e é fresca e pura e o riacho sabe conduzi-la devagar até aos teus pés. Demora o tempo necessário para o sol cortar o frio da neve nos picos. E o que sentes na ponta dos dedos dos pés é uma carícia tão suave, tão à temperatura da tua pele, que podias bem não o sentir. Sentes se quiseres.

Eu vim até ti. E só consigo olhar para os teus olhos enormes, perdidos, e limpar as lágrimas que não param de cair. Faço-te perguntas. Passo o dia a fazer-te as perguntas que, de noite, aperfeiçoo na minha cabeça. Tenho a certeza que não sei fazer-te as perguntas certas ou já terias encontrado a resposta. Tenho a certeza de que da minha incapacidade de te perguntar o que importa resulta o que tu não sabes. Nada te pesa. Nada te falta. Tudo se preparou para ti. Tudo te espera. Tudo quer que tu fiques. Tens tudo o que precisas e eu estou aqui e seguro-te na mão. E no entanto. Choras todo o dia encostada à pedra a que te afeiçoaste mais do que a mim. Parece que as duas partilham de uma qualquer natureza do que é, do que sempre foi, e do que, apesar do absurdo, está no nosso caminho e é intorneável.

Parece-me que, se for embora, não notarás a diferença. Suspeito que só eu preciso da resposta que continuo a pedir-te. Nada parece conseguir mudar a tua necessidade de te encostares à pedra e chorares. Olhas para cima. Olhas a montanha. Sei que tenho de te perguntar sobre a montanha e tento encontrar as perguntas certas. Sabes que não precisas de a subir não sabes? Sei. Sabes que nada está preparado para ti naquela montanha? Sei. Sabes que vais sofrer, cair, esfolar-te, partir-te, escorregar, perder as forças? Sei, sei, sei, sei, sei, sei. Tens de ir? Tenho. Porque choras? Porque não sei o que faço aqui. E na montanha, saberás? Não sei. É por isso que tenho de ir. Quando lá chegar, saberei.

Levantas-te e segues. E afinal eu tinha razão. Das minhas perguntas erradas corriam as tuas lágrimas. Da minha incapacidade de te fazer as perguntas certas, a tua paragem. De compreendermos os dois o que antes de perguntar não sabíamos, a tua ida.  

RD, 11.01.2013