Imaginemos assim: o Adão, primeiro homem e responsável genético pelo medo
que os seus descendentes masculinos lhe herdaram, hesitava. Já sabemos que foi
assim. A maçã, redondinha, ali na árvore, um mundo inteiro por descobrir ou o
conforto daquele paraíso sem nada por inventar? O dilema do Adão é um falso
dilema. A sua escolha é a de sempre e eterna. A segurança do que está feito, de
uma vida sem imprevistos, disfarçada de uma responsabilidade enorme, com a
desculpa da obediência a deus, com a desculpa do “eu tenho de manter isto a
funcionar, que é para isso que me criaram”.
Adão não tem dúvidas. Adão gosta de olhar para a maçã, mas não precisa de
lhe tocar. O primeiro homem aprendeu já a arte segura da fantasia. Quando se
aborrece com a falta de imprevisto e acha que o paraíso lhe corta a
possibilidade de exercer aventura e guerra, imagina, sentado à sombra. Cheira as
maçãs. Reinventa-se nesses momentos de sonolência e sonha-se Adão conquistador
de terras, mares e mulheres. Às vezes é atrevido na imaginação e assusta-se.
Até criou um mecanismo para ter a certeza de que não se perde na fantasia. Bate
com um pauzinho na perna. Acorda-se e volta a apreciar a magnitude das suas
graças. Toma um banho no rio frio e agradece ao senhor. Que vida magnífica. Até
uma janela para o mundo lhe foi dada, na forma daquela maçã.
Mas deixemos o Adão, que não é ele que nos interessa. Sabemos a sua
história, sabemos sempre a sua história.
Olhemos para a Eva, a nossa esperança de sairmos dali e de nos fazermos ao mundo. Eva nasceu para criar. Ela não quer conhecer o que deus conhece. Ela
quer criar, como deus criou. Ela é a deusa subjugada por um deus que a quer
obediente, a reproduzir-se em filhos fratricidas, culpada para sempre de ter
iniciado o movimento daquilo que não podia continuar parado. Eva não podia
ficar parada, é uma impossibilidade bíblica. Teriam vivido felizes para sempre
e a história divina acabava aí. Deus precisa de movimento, precisa que a história
continue e não admite que o seu paraíso, tão bonito e cheio de ordem, falha na
possibilidade de evolução. Falha no excesso de contentamento. Falha da mesma
forma que tudo o que é perfeito falha: está acabado, traz em si a sua própria
destruição.
Criou-a a ela diferente, com a esperança que ela o redima. E vive deus,
esse sim, um dilema. Sabe que, se a subjuga, o mundo acabou. Sabe que, se a
deixa ir, o caos reina e um dia questionarão se foi ele que o permitiu, ou,
deus nos livre, se existirá. Sabe que ela tem o que é preciso para criar
movimento e evolução. Sabe que não precisa de fazer nada para decidir, que,
afinal, já decidiu quando a permitiu assim, cheia de força criadora. Uma rival,
talvez. Alguém que não lhe obedece, se calhar. E a única esperança de não
ficar, ele próprio, preso naquela sua criação que lhe tinha parecido uma ideia
tão boa.
Eva não tem dilemas e não precisa da cobra. A nossa Eva não é mulher de se
desculpar com animais que falam. Eva quer ir. E o que ela quer é a realidade.
Não é a fantasia do Adão. Sente alguma ternura quando o vê assim, tão
confortável, a olhar para a maçã. É um querido, o Adão. Pode-se confiar nele
para nunca sair dali. E isso não pode deixar de provocar ternura. Quantas
mulheres não vão chorar a vida inteira por um Adão? Podemos dizer que Eva não
dá valor ao que tem? Dá. Ela sabe o que tem e sabe que vai sentir falta do
Adão. Mas ficar ali é uma impossibilidade. Mais vale deitar-se à sombra da
árvore do pecado e deixar-se morrer. É igual. Os dias serão todos iguais e a
perfeição que não lhe dá a ela escolhas, nem possibilidade de criar, matam-na
por dentro de qualquer maneira.
No fundo, só lhe resta decidir se quer ir sozinha ou se quer convencer o
Adão. Sabe o que acontece se for com ele. Afinal, toda a gente conhece a
história. Para sempre culpada, para sempre subjugada por ser considerada
perigosa para a ordem. Demorará milhares – milhões? – de anos até a deixarem
ser independente, sempre preocupados com o seu caráter volátil. Sabe que passará aos filhos o património
genético de um Adão obediente e grato a deus, o que tem o seu valor.
Não sabe o que acontecerá se for sozinha. De quem será o património
genético dos futuros homens? Talvez do mais forte que encontrar. Todas as
mulheres carregam consigo esta responsabilidade. E as que não carregam, talvez
sejam filhas de Adão. Os genes que passam aos filhos.
A nossa Eva come a maçã da árvore do conhecimento e vai-se embora. O Adão
estava a tomar banho no rio e não deu por nada. O seu mundo também vai mudar e
vai ter de adaptar-se a um paraíso em que não está inteiro, eterna metade, a
gozar o esplendor eterno. Talvez deus lhe dê outra fêmea, para garantir a
continuidade da espécie, como agradecimento pela piedade que demonstrou. Talvez
Adão passe a fantasiar com Eva quando olhar para a maçã.
Eva tem o mundo pela frente. Cruel, duro, sem conforto nem previsibilidade.
Mas sem pecado original. Um mundo em que não tem a culpa dos homens e de deus nos
ombros. Tem apenas as consequências dos seus atos no dia a dia. Eva quer esta
realidade, que a fere, que a derruba vezes sem conta, mas que a faz sentir. Eva
quer o potencial de criar uma nova ordem e lá vai ela. Mesmo que no fim tenha
sido sobretudo caos, mesmo que o que criou seja infinitamente inferior ao que
deixou. Não assumiu a culpa dos outros e não se deixou morrer antes de tempo.
Se pensarmos em realidades paralelas, talvez todas as escolhas tenham
existido e nós sejamos agora filhos de todos, dos que ficaram, dos que partiram
e dos que partiram sozinhos. Eu quero ser filha da Eva que partiu sozinha. Não
quero a herança da pecadora que existe para desculpar os homens das suas
decisões e da falta delas. Quero ser a filha da que se espatifou toda, mas que
só aceitou a culpa que é sua e das escolhas que faz. Não me deem como ancestral
a sedutora. Deem-me a guerreira, que eu preciso dela quase todos os dias.
PS: Este texto apresenta várias imperfeições teológicas, filosóficas e
científicas. É assim mesmo.
RD, 29.06.2017