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quinta-feira, 29 de junho de 2017

E se Eva tivesse comido a maçã sozinha?


Imaginemos assim: o Adão, primeiro homem e responsável genético pelo medo que os seus descendentes masculinos lhe herdaram, hesitava. Já sabemos que foi assim. A maçã, redondinha, ali na árvore, um mundo inteiro por descobrir ou o conforto daquele paraíso sem nada por inventar? O dilema do Adão é um falso dilema. A sua escolha é a de sempre e eterna. A segurança do que está feito, de uma vida sem imprevistos, disfarçada de uma responsabilidade enorme, com a desculpa da obediência a deus, com a desculpa do “eu tenho de manter isto a funcionar, que é para isso que me criaram”. 

Adão não tem dúvidas. Adão gosta de olhar para a maçã, mas não precisa de lhe tocar. O primeiro homem aprendeu já a arte segura da fantasia. Quando se aborrece com a falta de imprevisto e acha que o paraíso lhe corta a possibilidade de exercer aventura e guerra, imagina, sentado à sombra. Cheira as maçãs. Reinventa-se nesses momentos de sonolência e sonha-se Adão conquistador de terras, mares e mulheres. Às vezes é atrevido na imaginação e assusta-se. Até criou um mecanismo para ter a certeza de que não se perde na fantasia. Bate com um pauzinho na perna. Acorda-se e volta a apreciar a magnitude das suas graças. Toma um banho no rio frio e agradece ao senhor. Que vida magnífica. Até uma janela para o mundo lhe foi dada, na forma daquela maçã.
Mas deixemos o Adão, que não é ele que nos interessa. Sabemos a sua história, sabemos sempre a sua história. 

Olhemos para a Eva, a nossa esperança de sairmos dali e de nos fazermos ao mundo. Eva nasceu para criar. Ela não quer conhecer o que deus conhece. Ela quer criar, como deus criou. Ela é a deusa subjugada por um deus que a quer obediente, a reproduzir-se em filhos fratricidas, culpada para sempre de ter iniciado o movimento daquilo que não podia continuar parado. Eva não podia ficar parada, é uma impossibilidade bíblica. Teriam vivido felizes para sempre e a história divina acabava aí. Deus precisa de movimento, precisa que a história continue e não admite que o seu paraíso, tão bonito e cheio de ordem, falha na possibilidade de evolução. Falha no excesso de contentamento. Falha da mesma forma que tudo o que é perfeito falha: está acabado, traz em si a sua própria destruição. 

Criou-a a ela diferente, com a esperança que ela o redima. E vive deus, esse sim, um dilema. Sabe que, se a subjuga, o mundo acabou. Sabe que, se a deixa ir, o caos reina e um dia questionarão se foi ele que o permitiu, ou, deus nos livre, se existirá. Sabe que ela tem o que é preciso para criar movimento e evolução. Sabe que não precisa de fazer nada para decidir, que, afinal, já decidiu quando a permitiu assim, cheia de força criadora. Uma rival, talvez. Alguém que não lhe obedece, se calhar. E a única esperança de não ficar, ele próprio, preso naquela sua criação que lhe tinha parecido uma ideia tão boa.

Eva não tem dilemas e não precisa da cobra. A nossa Eva não é mulher de se desculpar com animais que falam. Eva quer ir. E o que ela quer é a realidade. Não é a fantasia do Adão. Sente alguma ternura quando o vê assim, tão confortável, a olhar para a maçã. É um querido, o Adão. Pode-se confiar nele para nunca sair dali. E isso não pode deixar de provocar ternura. Quantas mulheres não vão chorar a vida inteira por um Adão? Podemos dizer que Eva não dá valor ao que tem? Dá. Ela sabe o que tem e sabe que vai sentir falta do Adão. Mas ficar ali é uma impossibilidade. Mais vale deitar-se à sombra da árvore do pecado e deixar-se morrer. É igual. Os dias serão todos iguais e a perfeição que não lhe dá a ela escolhas, nem possibilidade de criar, matam-na por dentro de qualquer maneira.

No fundo, só lhe resta decidir se quer ir sozinha ou se quer convencer o Adão. Sabe o que acontece se for com ele. Afinal, toda a gente conhece a história. Para sempre culpada, para sempre subjugada por ser considerada perigosa para a ordem. Demorará milhares – milhões? – de anos até a deixarem ser independente, sempre preocupados com o seu caráter volátil.  Sabe que passará aos filhos o património genético de um Adão obediente e grato a deus, o que tem o seu valor. 

Não sabe o que acontecerá se for sozinha. De quem será o património genético dos futuros homens? Talvez do mais forte que encontrar. Todas as mulheres carregam consigo esta responsabilidade. E as que não carregam, talvez sejam filhas de Adão. Os genes que passam aos filhos. 

A nossa Eva come a maçã da árvore do conhecimento e vai-se embora. O Adão estava a tomar banho no rio e não deu por nada. O seu mundo também vai mudar e vai ter de adaptar-se a um paraíso em que não está inteiro, eterna metade, a gozar o esplendor eterno. Talvez deus lhe dê outra fêmea, para garantir a continuidade da espécie, como agradecimento pela piedade que demonstrou. Talvez Adão passe a fantasiar com Eva quando olhar para a maçã.

Eva tem o mundo pela frente. Cruel, duro, sem conforto nem previsibilidade. Mas sem pecado original. Um mundo em que não tem a culpa dos homens e de deus nos ombros. Tem apenas as consequências dos seus atos no dia a dia. Eva quer esta realidade, que a fere, que a derruba vezes sem conta, mas que a faz sentir. Eva quer o potencial de criar uma nova ordem e lá vai ela. Mesmo que no fim tenha sido sobretudo caos, mesmo que o que criou seja infinitamente inferior ao que deixou. Não assumiu a culpa dos outros e não se deixou morrer antes de tempo. 

Se pensarmos em realidades paralelas, talvez todas as escolhas tenham existido e nós sejamos agora filhos de todos, dos que ficaram, dos que partiram e dos que partiram sozinhos. Eu quero ser filha da Eva que partiu sozinha. Não quero a herança da pecadora que existe para desculpar os homens das suas decisões e da falta delas. Quero ser a filha da que se espatifou toda, mas que só aceitou a culpa que é sua e das escolhas que faz. Não me deem como ancestral a sedutora. Deem-me a guerreira, que eu preciso dela quase todos os dias.


PS: Este texto apresenta várias imperfeições teológicas, filosóficas e científicas. É assim mesmo.

RD, 29.06.2017