Secava. Qualquer coisa na natureza dele se encolhia e secava. Murchava por dentro, cada vez mais encolhido. Não que se notasse fisicamente. Não se notava. Continuava alto, enxuto, talvez apenas mais enxuto, mas direito. E, no entanto, notava-se. Só se se olhasse para ele um pouco mais detidamente. Ou se o conhecessem há muito tempo, como era o meu caso. Via-o passar todos os dias, à mesma hora, e era como se conduzisse uma experiência cuja pergunta inicial se tinha perdido. Anotava mentalmente as diferenças e ele continuava.
Mais seco, a desaparecer por dentro, sem sinais exteriores. Apenas aquele desaparecimento de uma natureza substancial, nada de muito concreto para uma experiência científica, na verdade.
Mais palavras. Havia mais palavras. Falava mais com as pessoas, comigo, com os outros que encontrava na rua. Como se se ligasse aos outros por palavras. Um fio cada vez maior, feito de palavras, cada vez mais juntas. Como se a relação dele com os outros estivesse naqueles fios de palavras. Talvez resultasse, anotava eu mentalmente, talvez aquelas palavras substituíssem o que de fundamental secava nele. Podia ser essa a pergunta de partida da minha investigação que só existia na minha mente e cujas evidências não eram documentáveis. Mas estavam lá.
Um dia, em que o notei mais palavroso e insubstancial do que poderia prever a evolução do seu desaparecimento interior, resolvi perguntar-lhe se ele notava a transformação que se dava dentro dele. Primeiro olhou para mim em sobressalto, um pestanejar de olhos rápido. Respondeu-me apenas: eu estou bem.
Decidi não insistir e continuar a anotar mentalmente os resultados daquela experiência que eu não tinha começado, cujo resultado não previa, cujas variáveis não controlava. Observador fortuito que fui escolhido, lembrei-me que não devia interferir, sob pena de contaminar os resultados.
Mais tarde, parou ao pé de mim e estava inteiro. Como se tivesse recuperado uma parte essencial dele, aquela que tinha vindo a secar, como se tivesse feito um transplante de um órgão vital, uma regeneração interna. Os olhos brilhavam, aquosos. Sorriu, um sorriso aberto, como se cheio de substância.
O que teria ocasionado aquela mudança? Ele sabê-lo-ia? Se lho perguntasse, iria alterar o que estava a acontecer à minha frente?
Não precisei de perguntar. Disse-me, com uma alegria quase infantil, palpável, plena.
Sabes? Pintei o mar.
Continuei em silêncio. Com medo de acabar com o sortilégio. Não o sabia pintor. Continuou, cheio por dentro.
Estava a pintar uma mesa. Uma barra azul, uniforme. E de repente vi que não fazia sentido. Aquela barra azul, sem vida. Risquei-a com azul-escuro, um traço profundo, e ganhou o abismo. Risquei-a de branco e ganhou espuma, rebentação, gargalhadas e violência. Risquei-a de cinzento e ameaçou tormentas, quase me afundei. Passei com um traço azul claro, quase verde, quase transparente e mergulhei de olhos abertos. Em águas calmas, mas cheias de vida. Cálidas.
Era isso? Perguntei.
Era. Sim, era isso, respondeu-me, calmo, inteiro. Fazia-me falta o mar.
RD, 17.10.2011
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