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segunda-feira, 7 de novembro de 2011

A casa dos horrores


Brincam na rua. Vestidos de esqueletos, como a contrariar a nudez que a morte traz. Uma morte ao contrário, vestem-se de ossos. Leva a carne, as veias, a pele. Ficam os ossos limpinhos, agora pintados no tecido. Vestidos de bruxas, de vampiros, de seres deformados, com maquilhagens cada vez mais sofisticadas, tornam as aberrações fingidas mais próximas de uma realidade que não existe.

Exorcizam os medos, brincando com eles. Os risos roçam a histeria, há uma nota de medo nas gargalhadas que ecoam na noite. E talvez seja uma forma saudável de lidarmos com os nossos esqueletos. Todos temos esqueletos nos armários, uns mais limpinhos, outros já cheios de pó, irrecuperáveis, escondidos lá no fundo mais inacessível, escuro, a porta mais alta. Podemos modernizar os nossos medos, tal como modernizamos os armários, limpá-los, expô-los,  organizá-los.

Esqueletos expostos num belo closet, demarcados por organizadores de roupa, de sapatos,  de cintos. Há muito tempo atrás, um arquitecto tentou vender-me que o moderno, o que se usava lá fora, era o closet, tentando com isso convencer-me da minha necessidade de um armário aberto, sem portas. Eu, que não sou moderna, achei aquilo uma estupidez. Ainda acho. Por que raio uma palavra que vem de fechar, fechado, há de nomear um espaço de exposição de roupas? Será que deveriam ficar com as etiquetas penduradas, à vista?

Também podíamos pôr um preço nos nossos esqueletos, nos nossos medos, nas nossas vergonhas, nas nossas perdas, e organizá-los por valor, de forma a integrarem harmoniosamente a paisagem do nosso closet. Os mais caros são os que se podem mostrar, aqueles que nos foram impostos e que todos conhecem e aceitam. Até nos tratam melhor por os termos. Podemos falar deles. Podemos mostrá-los. São esqueletos limpinhos. O esqueleto do meu pai, à frente, ao lado de uns sapatos Louboutin. Ou o do meu cão. Não estou a comparar a perda do meu pai com a do meu cão. Ocupam espaços diferentes, apesar de o meu pai não ter sido alto e de o meu cão ter sido grande.

Nas prateleiras mais altas, ainda à vista, mas já não tão expostos, os nossos medos dizíveis. As fobias. Água a entrar-me pelos olhos. Iguanas a fugir à minha frente. Coisas dessas. Ao lado das camisolas que ainda não conseguimos deitar fora, mas que já não nos fazem falta.

Lá no fundo, no canto escuro, num sítio a que nem os mais modernos leds chegam, a caixa negra. Os nossos medos mais tenebrosos, mais miseráveis, mais feios. Ficarmos nus em público. Caírem os dentes todos ao mesmo tempo. O que fiz naquele verão. Alguém olhar para nós e ver como somos realmente. Somos feitos da matéria mais ignóbil e mais preciosa. Vida e podridão. Capazes do melhor e do pior. A caixa que ninguém pode abrir, a menos que nos afoguemos. Não deixamos que se aproximem. Está ligada a mecanismos de defesa fantásticos e tecnologicamente avançados, que incluem cães de três cabeças e feixes de laser. Nem um agente secreto de sucesso de bilheteira. Porque nós estamos sentados em cima dela, caso tudo o resto falhe. Não a abrem. E tão obcecados estamos com a sua defesa que às vezes somos só nós e ela, os dois sozinhos. Já ninguém a quer ver e nós mantemos a guarda.

É feita de chumbo e o peso mantém-nos com os pés na terra. Se nos atrevêssemos a deixá-la vulnerável, talvez conseguíssemos voar. 


RD, 31.10.2011

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