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quinta-feira, 22 de novembro de 2012

Se um dia te falta a vontade


Os homens esperam-te à porta das tendas. Querem lutar. Precisam de lutar. Tal como tu precisaste, todos os dias, de manhã ao pôr do sol. Só a noite te fez pousar as armas, durante anos. Lutaste ao sol e à chuva, mas nem os sentias. O furor da luta, a morte dos outros cujas caras já esqueceste, a tua espada enterrada nas cabeças, nos pulmões, nos ossos dos outros, tão bravos como tu. Só para depois a voltares a desenterrar e continuares a tua ceifa. Nunca mataste pelo gosto de matar. Mataste pela honra, pelo teu reino, pelos teus homens, pela defesa das tuas mulheres. Nunca mataste por desporto. Mataste porque és um herói e os heróis matam. Lutaste porque nasceste a lutar e não te ensinaram outra arte a não ser essa, a de ganhar batalhas. Também as perdeste e se nunca te feriram, levaram os teus companheiros, levaram o teu orgulho de herói, mancharam a tua reputação de invencível. Mas voltaste sempre, na madrugada seguinte, a pegar no escudo que os deuses forjaram para te proteger. Na espada que o teu pai te deu quando ainda não tinhas tamanho para pegar nela. Filho de reis, amado dos deuses. Não escolheste as tuas lutas. Os problemas têm de ser resolvidos.

Mas hoje perdeste a vontade de lutar. Dizes que foi a consciência da tua morte próxima, pela voz da tua mãe. Dizes que foi a afronta de quem defendias que te impede de lutar. Dizes que não podes honrar com as tuas armas um rei que não te respeita. Dizes que a levaram do teu leito e que por isso não lutas.

Mas a verdade, tu sabes qual é. Perdeste a vontade. Percebeste que lutas e que não és tu que escolhes as tuas lutas. Não escolheste a tua vida. Percebeste que as lutas dos outros não são as tuas. Percebeste que podes ser invencível e ainda assim a guerra não acabará. Percebeste que perdeste o altar onde depositar os despojos das tuas vitórias. Se não a ela, a quem? Sempre os depositaste no altar do amor e agora pedem-te que o faças no altar da morte. Matar pela morte não te dá vontade de lutar.

Perdeste a vontade porque fizeste perguntas. Continuar para quê? Fizeste a única pergunta não permitida a um herói: e se eu parar? E percebes que é indiferente. Se parares a guerra não é ganha. E isso que te interessa agora? Heitor ainda vivo, as muralhas de Tróia intactas e tu vivo para morrer noutra guerra menos cantada. Que diferença? A glória? Essa é a do futuro, é a que os outros cantam, é a que faz sonhar os pequenos heróis por vir. A ti, a glória futura, hoje, que diferença te faz? Saber o teu nome nunca esquecido não te faz menos sozinho aí onde estás.

E ainda não sabes que o levarão também a ele, o teu companheiro. E que lutarás por amor e pela morte e que os dois, amor e morte, serão um só no momento em que decidires a vitória daqueles que já não queres defender, de cujos futuros te alheias. Ainda não sabes que os deuses, quando te veem questionar o destino que escolheram para ti, são capazes de esquemas rapaces. Perderam a tua vontade, mas precisam da tua força. Lutarás sem vontade.

Lutarás ainda, só tu e a tua dor. Destruirás e a tua destruição abrirá a grande brecha nos muros de Tróia. Mas já não o fazes por Tróia, não o fazes pela tua mãe, não o fazes pelos teus que te seguem, não o fazes por ela, que voltará ao teu leito. Só o fazes por dor. Não por vontade. 

RD, 22.11.2012

quarta-feira, 31 de outubro de 2012

Medir o amor


O meu amor por ti é. Não é mais nem é menos. É. Não o compares com o amor que amei antes ou que irei amar no futuro, porque esses são amores que já foram ou promessas de amor por vir. O meu amor por ti é agora. Existe e está aqui comigo e eu não o meço, não lhe tomo o peso, não o comparo. Sinto-o e basta-me.

O meu amor por ti não é mais nem menos do que o teu amor por mim. Como comparar? Com que escala se compara o que é? Podemos travesti-lo de roupagens mundanas, dar-lhe contornos reconhecíveis, dar-lhe volume, peso, só para fazermos um exercício de meninos que se divertem a mexer em formas e a aprender medidas. O meu amor por ti é de que tamanho? De que tamanho é o teu amor por mim? Como os comparamos? Criamos um referencial, indicadores de medida, critérios. Avaliamos. 

Podemos cansar o nosso amor a medi-lo – este é outro amor, um terceiro, não é o meu amor por ti nem o teu por mim, é um novo, por criar, o nosso. Ou podemos medi-lo por referência aos resultados esperados: o que queremos que o meu amor  por ti consiga? Nunca menos do que salvar o mundo. Nunca menos do que a redenção total. Nunca menos do que a insustentável leveza. Nunca menos do que a ausência de peso e de medida, de regras e de convenções, nunca menos o que nunca vivemos e não sabemos o que é e por isso não sabemos se encontrámos ou não, se o que estamos a viver é o amor que queremos ou se é aquele que é.

Desisto de medir o meu amor por ti. Queria dizer-te o que ele é. O poder que tem. Queria mostrar-te como é, comparado com outros. Mas nada disso é verdade, porque o meu amor por ti não é construção. Não tem tempo, não foi antes e não é depois. E não pode nada a não ser ser. Volto ao início e talvez tente de novo, num dia de sol e de vento, mostrar-te o meu amor por ti. Se o vires, talvez o reconheças, mesmo sem lhe saberes as formas e as medidas, mesmo sem o poderes comparar com nada que tenhas visto antes. Quem sabe tu olhas para ele e o vês como ele é. Ou se nem o reconheces no horizonte, tão estranho se encontra sem semelhança com que o possas identificar. Mesmo sem lhe dares forma e medida, saberás que ele é?

Eu sei que ele é, porque mesmo quando lhe viro as costas e finjo que não existe, continua lá. Tem a qualidade do que existe e mais nada. 

RD, 31.10.2012

quarta-feira, 26 de setembro de 2012

Eu sou a fúria


Destruo, mato, nada fica de pé, nada vive. Tudo é cinza e sangue e escuridão quando me afasto. Arrasto os pés, cansada e não olho para trás. Não preciso, porque carrego comigo o vórtice da destruição que ainda dança dentro de mim.

Deixo cair a espada na pedra da entrada e tu voltas-te para me olhar. Vês o sangue e a terra queimada que se agarram à minha pele. Sentes o cheiro da morte e o sabor da amargura que trago na boca. E viras-me as costas. Sei que esta é a única visão de mim que não suportas e não ta imponho. Sigo para o quarto do banho, onde deixo cair a armadura. Dispo-me e sei que tenho pela frente longas horas de limpeza. Lavo-me e esfrego-me com o cuidado e a determinação de quem quer apagar as imagens da memória, todas. Os gritos, a impossibilidade de parar, o ter de destruir tudo até ao fim, mesmo quando as forças começam a faltar e a hesitação já deixou um lastro de sombra dentro de mim. Acabei o que comecei. Agora lavo-me. Na escuridão, porque nada do que foi pode ver a luz do dia. A pele já irritada pela insistência pede-me que pare. Agora é só água. Muita água para me lavar por dentro, para me limpar do que acabou e por isso não pode continuar a existir nem apenas dentro de mim.

Quando tudo me parece limpo, seco-me, ajoelho-me no chão e choro com a cabeça nas pernas. Choro durante tanto tempo que adormeço de exaustão. É um choro limpo, já sem imagens, nem sons. Apenas a dor pura. O cansaço da fúria e do choro dão-me horas de sono profundo, e assim encolhida nasço de novo. Visto uma túnica leve que me tapa os pés feridos. Descalça percorro os corredores ainda adormecidos. Entro no quarto das crianças e beijo-lhes os cabelos a cheirar a sonhos. Digo-lhes ao ouvido: durmam descansados, a mãe matou os monstros.

Vou ter contigo. Sei que me esperas. Paro para dar um nó de cabelo no caule de uma flor. Quero que me vejas assim como sou, a cada vez menina a querer sentar-me no teu colo. Olho para ti. Estás distante.

Tu és a força. Mas sei que ainda não é o tempo. Afasto-me para as janelas, abro-as de par em par e o sol nasce.

Eu sou o sol. Morno, ensonado, derrete o gelo, afasta o frio e as flores viram-se para mim. Sou de novo a criação. Agora posso olhar-te.

Sento-me à tua frente e sinto formar-se na tua boca a pergunta. Sabes que outros antes de ti, durante séculos, a fizeram. Sabes que os homens apenas podem desviar os olhos quando as mulheres precisam de destruir. A nossa não é uma luta com regras, com códigos de honra, um desporto de cavaleiros que se matam por território, fama, poder. A nossa nem sequer é luta. É destruição. Sem regras, sem que se possa falar dela, sem história. É a fúria solta até à extinção da ameaça invisível aos vossos olhos. Viram as costas por pudor. Se olhassem, não nos conseguiriam ver assim, agora sol e flores, criação e paz. E sabem que uma sem a outra não existe. Olhas para mim com a pergunta nos olhos. Paro-te as palavras com os meus olhos, já vulcão, chama que molda a lâmina, lâmina que corta e destrói. A pergunta fica por fazer e eu posso voltar para a força dos teus braços. A resposta, durante séculos, tem sido sempre a mesma.

RD, 26.09.2012

quarta-feira, 8 de agosto de 2012

Para ti criarei um dia puro


Quero oferecer-te um dia puro. Um dia em que os dois possamos abrir os olhos e olhar para o outro com os nossos sentimentos acabados de nascer. Sem mácula, sem receios, só os nossos olhos suspensos um no outro e sem o passado que frustrámos, o futuro que desconhecemos. O momento da criação, repetido no teu dia puro. 

Antes de nos termos magoado. Antes de nos termos mentido. Antes de termos desviado os olhos pela primeira vez, por não aguentarmos a verdade nos olhos do outro. Os dois, de cabeça erguida, no momento primeiro de nós, os outros excluídos, as ausências de fora, o telefone que não tocou esquecido, todas as palavras que dissemos a mais, todos os silêncios com que nos agredimos, de fora. 

Quero oferecer-te um dia puro. Sem a primeira vez em que gritámos palavras de ódio, sem a primeira vez em que calámos palavras de amor. Todas as dores, todas as nódoas negras, todas as marcas, as cicatrizes fora do nosso dia puro. Sem as rugas que marcam a pele, sem o peso do mal que nos fizemos. Tudo jovem, fresco, novo e cheio de potência. 

Eis o teu dia puro, o momento da criação. O momento em que dentro de nós tudo se encolheu e expandiu por reconhecer o outro. O momento que a minha pele e a tua deixaram de conhecer fronteiras e o território comum que era nosso foi marcado apenas pelo espaço dos outros. O momento em que não precisámos de palavras, de justificações, de desculpas. Confiança no que nascia, na força do que crescia, sem espaço para dúvidas nem para inseguranças – é esse o momento a que volto para te criar um dia puro. 

E talvez ele não seja real. Talvez nunca mais tenhamos um dia puro. Porque não seríamos tu e eu e o que vivemos e destruímos e criámos, já não puro, já consertado, mas ainda assim cheio da vitalidade do que se transforma. Podemos viver o dia puro que te quero oferecer, mas sabemos que é uma criação, porque esse dia nunca mais. Nós não somos os mesmos e deixar o que fizemos de fora do nosso dia puro é tentar a pureza aos pedaços. 

Podemos viver o dia que temos, sabendo que foi consertado. Que não é perfeito, mas é inteiro, tu e eu, as nossas fraquezas e as nossas glórias, as nossas lágrimas e as nossas gargalhadas, as palavras que dissemos e as que calámos. E desisto de te criar um dia puro. Para ti criarei um dia inteiro. 

RD, 08.08.2012

quinta-feira, 26 de julho de 2012

Não vá vir a fome, não vá vir a guerra.

Ao meu amigo Zé Augusto, dono da primeira frase deste texto.

Não há maior crueldade do que deixarmos vir até nós alguém, seguro e digno, sabendo que não temos nada para lhe dar. E no entanto sentimo-nos confortáveis ao fazê-lo. Sentados, de perna cruzada, encostamos as costas à cadeira para fixarmos a ilusão de que o ato que vamos cometer não contém vacilação. Sorrimos e estendemos o braço, damos a mão, puxamos para junto de nós quem decidiu, na posse de toda a sua vontade, que quer vir para junto de nós. E na ilusão que criámos podiam ter entrevisto que o papel que lhes temos destinado é só esse: o de assumirem a sua vontade para vir até nós, seguir um guião mil vezes representado, sucesso de bilheteira de séculos. O papel que lhes destinamos é vazio de conteúdo. Peça igual a tantas peças numa construção que é nossa, que não reconhece rostos nem vozes.

Não temos nada para dar. E no entanto, estendemos a mão. Não vá vir a fome, não vá vir a guerra. Mandamo-las embora porque precisamos de correr as cortinas, limpar o palco, não estava suficientemente bem, não era bem aquele tom. Mas se o Hamlet foi tantas vezes encenado, porque não posso ser eu a Ophelia? Só mais uma, entre tantas? Não podes, não saiu bem, e a Ophelia nunca é a mesma, mas tem de ser cada vez mais perfeita e tu não acrescentaste nada à anterior. Mas se ela morre afogada, mil vezes afogada... Ainda assim. Ou por isso mesmo. Tens de ir embora, o que tinha para ti já não é, serviu-me para imaginar o que poderia ser melhor e diferente, mas não eras tu. Era o inefável, o que eu criei na minha cabeça e que quis preencher contigo, para ver se calhava. Se por acaso. Um golpe da fortuna. E agora? E agora vais. Agora não tenho nada para ti, nunca tive, só esta vontade de ver se encaixavas ali, naquele pedacinho da minha elaboração que precisava de uma cara. Mas não posso ficar? Se não fizeres barulho, fica por aí. Não vá vir a fome, não vá vir a guerra. Ficas ali na prateleira, ao lado daqueles enlatados, tu própria agora um enlatado.

E voltamos a caçar. Precisamos de mais, de melhor, não queremos usar os enlatados guardados no fundo da despensa, a carne tem de ser fresca, outra cara, outra voz, as mesmas palavras, a peça é sempre a mesma e sempre nova, desta vez tem de sair certo, é naquele tom que aquela frase tem de ser dita ou fecha-se o palco e deixa-se o vazio reinar. Acaba-se já aqui o que soa mal, o que não é perfeito não há de ser repetido, já é mau que tenha sido dito uma vez naquele palco que escolheste para ver encenar a tua vida.

Sentamo-nos mais uma vez na cadeira do realizador e estendemos a mão. E se não vier ninguém, já te perguntaste? Não. Sabes que virá sempre alguém. Vêm porque acham que são elas que vão conseguir acertar no tom perfeito, tornar a tua construção única, a peça finalmente encontrada depois de tanto procurar. E não percebem que nunca serão elas porque és só tu e só precisas de ti e de ir experimentando rostos em fatos diferentes para te distraíres enquanto elaboras na sofisticação crescente do teu cenário. Tu crias e tu destróis. Tu iluminas a boca de cena e tu fechas os cortinados. E mesmo quando o afirmas, riem-se, seguras, a dignidade intacta de quem ainda não viu as luzes quando se apagam e o vazio do que tens para lhes oferecer. Todas irão. Até as que te amaram para conseguirem ficar. Amaste-as por isso, mas ainda assim notaste o momento primeiro da fratura, ínfima, maior do que tu, depois, prestes a engolir-te, quando, naquele momento, sentiste que não era ela, nenhuma delas, com o seu amor enlatado, pronto a servir, não vá vir a fome, não vá vir a guerra.

Porque és sempre só tu. Com as tuas alegrias e tristezas, com os teus momentos inspirados e as tuas banalidades. É sempre, só, sobre ti. Nenhuma delas pode tomar o lugar que é teu e nenhuma se pode comparar a ti.

Porquê deixá-las vir, seguras e cheias de dignidade, para as deixar ir destruídas? Porquê a crueldade? Tens de te alimentar e nunca se sabe. A fome pode vir. A guerra pode vir. Precisas delas e precisas dos teus enlatados. 

RD, 26.07.2012