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quarta-feira, 26 de setembro de 2012

Eu sou a fúria


Destruo, mato, nada fica de pé, nada vive. Tudo é cinza e sangue e escuridão quando me afasto. Arrasto os pés, cansada e não olho para trás. Não preciso, porque carrego comigo o vórtice da destruição que ainda dança dentro de mim.

Deixo cair a espada na pedra da entrada e tu voltas-te para me olhar. Vês o sangue e a terra queimada que se agarram à minha pele. Sentes o cheiro da morte e o sabor da amargura que trago na boca. E viras-me as costas. Sei que esta é a única visão de mim que não suportas e não ta imponho. Sigo para o quarto do banho, onde deixo cair a armadura. Dispo-me e sei que tenho pela frente longas horas de limpeza. Lavo-me e esfrego-me com o cuidado e a determinação de quem quer apagar as imagens da memória, todas. Os gritos, a impossibilidade de parar, o ter de destruir tudo até ao fim, mesmo quando as forças começam a faltar e a hesitação já deixou um lastro de sombra dentro de mim. Acabei o que comecei. Agora lavo-me. Na escuridão, porque nada do que foi pode ver a luz do dia. A pele já irritada pela insistência pede-me que pare. Agora é só água. Muita água para me lavar por dentro, para me limpar do que acabou e por isso não pode continuar a existir nem apenas dentro de mim.

Quando tudo me parece limpo, seco-me, ajoelho-me no chão e choro com a cabeça nas pernas. Choro durante tanto tempo que adormeço de exaustão. É um choro limpo, já sem imagens, nem sons. Apenas a dor pura. O cansaço da fúria e do choro dão-me horas de sono profundo, e assim encolhida nasço de novo. Visto uma túnica leve que me tapa os pés feridos. Descalça percorro os corredores ainda adormecidos. Entro no quarto das crianças e beijo-lhes os cabelos a cheirar a sonhos. Digo-lhes ao ouvido: durmam descansados, a mãe matou os monstros.

Vou ter contigo. Sei que me esperas. Paro para dar um nó de cabelo no caule de uma flor. Quero que me vejas assim como sou, a cada vez menina a querer sentar-me no teu colo. Olho para ti. Estás distante.

Tu és a força. Mas sei que ainda não é o tempo. Afasto-me para as janelas, abro-as de par em par e o sol nasce.

Eu sou o sol. Morno, ensonado, derrete o gelo, afasta o frio e as flores viram-se para mim. Sou de novo a criação. Agora posso olhar-te.

Sento-me à tua frente e sinto formar-se na tua boca a pergunta. Sabes que outros antes de ti, durante séculos, a fizeram. Sabes que os homens apenas podem desviar os olhos quando as mulheres precisam de destruir. A nossa não é uma luta com regras, com códigos de honra, um desporto de cavaleiros que se matam por território, fama, poder. A nossa nem sequer é luta. É destruição. Sem regras, sem que se possa falar dela, sem história. É a fúria solta até à extinção da ameaça invisível aos vossos olhos. Viram as costas por pudor. Se olhassem, não nos conseguiriam ver assim, agora sol e flores, criação e paz. E sabem que uma sem a outra não existe. Olhas para mim com a pergunta nos olhos. Paro-te as palavras com os meus olhos, já vulcão, chama que molda a lâmina, lâmina que corta e destrói. A pergunta fica por fazer e eu posso voltar para a força dos teus braços. A resposta, durante séculos, tem sido sempre a mesma.

RD, 26.09.2012

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