Destruo, mato, nada
fica de pé, nada vive. Tudo é cinza e sangue e escuridão quando me afasto.
Arrasto os pés, cansada e não olho para trás. Não preciso, porque carrego
comigo o vórtice da destruição que ainda dança dentro de mim.
Deixo cair a espada
na pedra da entrada e tu voltas-te para me olhar. Vês o sangue e a terra
queimada que se agarram à minha pele. Sentes o cheiro da morte e o sabor da
amargura que trago na boca. E viras-me as costas. Sei que esta é a única visão
de mim que não suportas e não ta imponho. Sigo para o quarto do banho, onde
deixo cair a armadura. Dispo-me e sei que tenho pela frente longas horas de
limpeza. Lavo-me e esfrego-me com o cuidado e a determinação de quem quer
apagar as imagens da memória, todas. Os gritos, a impossibilidade de parar, o
ter de destruir tudo até ao fim, mesmo quando as forças começam a faltar e a
hesitação já deixou um lastro de sombra dentro de mim. Acabei o que comecei.
Agora lavo-me. Na escuridão, porque nada do que foi pode ver a luz do dia. A pele já irritada
pela insistência pede-me que pare. Agora é só água. Muita água para me lavar
por dentro, para me limpar do que acabou e por isso não pode continuar a
existir nem apenas dentro de mim.
Quando tudo me
parece limpo, seco-me, ajoelho-me no chão e choro com a cabeça nas pernas.
Choro durante tanto tempo que adormeço de exaustão. É um choro limpo, já sem
imagens, nem sons. Apenas a dor pura. O cansaço da fúria e do choro dão-me
horas de sono profundo, e assim encolhida nasço de novo. Visto uma túnica
leve que me tapa os pés feridos. Descalça percorro os corredores ainda
adormecidos. Entro no quarto das crianças e beijo-lhes os cabelos a cheirar a
sonhos. Digo-lhes ao ouvido: durmam descansados, a mãe matou os monstros.
Vou ter contigo. Sei
que me esperas. Paro para dar um nó de cabelo no caule de uma flor. Quero que
me vejas assim como sou, a cada vez menina a querer sentar-me no teu colo. Olho
para ti. Estás distante.
Tu és a força. Mas
sei que ainda não é o tempo. Afasto-me para as janelas, abro-as de par em par e
o sol nasce.
Eu sou o sol. Morno,
ensonado, derrete o gelo, afasta o frio e as flores viram-se para mim. Sou de
novo a criação. Agora posso olhar-te.
Sento-me à tua frente e sinto formar-se na tua boca a
pergunta. Sabes que outros antes de ti, durante séculos, a fizeram. Sabes que
os homens apenas podem desviar os olhos quando as mulheres precisam de
destruir. A nossa não é uma luta com regras, com códigos de honra, um desporto
de cavaleiros que se matam por território, fama, poder. A nossa nem sequer é
luta. É destruição. Sem regras, sem que se possa falar dela, sem história. É a
fúria solta até à extinção da ameaça invisível aos vossos olhos. Viram as
costas por pudor. Se olhassem, não nos conseguiriam ver assim, agora sol e flores,
criação e paz. E sabem que uma sem a outra não existe. Olhas para mim com a
pergunta nos olhos. Paro-te as palavras com os meus olhos, já vulcão, chama que
molda a lâmina, lâmina que corta e destrói. A pergunta fica por fazer e eu
posso voltar para a força dos teus braços. A resposta, durante séculos, tem
sido sempre a mesma.
RD, 26.09.2012
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