Ao meu amigo Zé Augusto, dono da primeira frase deste texto.
Não há maior
crueldade do que deixarmos vir até nós alguém, seguro e digno, sabendo que não
temos nada para lhe dar. E no entanto sentimo-nos confortáveis ao fazê-lo.
Sentados, de perna cruzada, encostamos as costas à cadeira para fixarmos a
ilusão de que o ato que vamos cometer não contém vacilação. Sorrimos e
estendemos o braço, damos a mão, puxamos para junto de nós quem decidiu, na
posse de toda a sua vontade, que quer vir para junto de nós. E na ilusão que
criámos podiam ter entrevisto que o papel que lhes temos destinado é só esse: o
de assumirem a sua vontade para vir até nós, seguir um guião mil vezes
representado, sucesso de bilheteira de séculos. O papel que lhes destinamos é
vazio de conteúdo. Peça igual a tantas peças numa construção que é nossa, que
não reconhece rostos nem vozes.
Não temos nada para
dar. E no entanto, estendemos a mão. Não vá vir a fome, não vá vir a guerra. Mandamo-las
embora porque precisamos de correr as cortinas, limpar o palco, não estava
suficientemente bem, não era bem aquele tom. Mas se o Hamlet foi tantas vezes
encenado, porque não posso ser eu a Ophelia? Só mais uma, entre tantas? Não
podes, não saiu bem, e a Ophelia nunca é a mesma, mas tem de ser cada vez mais
perfeita e tu não acrescentaste nada à anterior. Mas se ela morre afogada, mil
vezes afogada... Ainda assim. Ou por isso mesmo. Tens de ir embora, o que tinha
para ti já não é, serviu-me para imaginar o que poderia ser melhor e diferente,
mas não eras tu. Era o inefável, o que eu criei na minha cabeça e que quis
preencher contigo, para ver se calhava. Se por acaso. Um golpe da fortuna. E
agora? E agora vais. Agora não tenho nada para ti, nunca tive, só esta vontade
de ver se encaixavas ali, naquele pedacinho da minha elaboração que precisava
de uma cara. Mas não posso ficar? Se não fizeres barulho, fica por aí. Não vá
vir a fome, não vá vir a guerra. Ficas ali na prateleira, ao lado daqueles
enlatados, tu própria agora um enlatado.
E voltamos a caçar.
Precisamos de mais, de melhor, não queremos usar os enlatados guardados no
fundo da despensa, a carne tem de ser fresca, outra cara, outra voz, as mesmas
palavras, a peça é sempre a mesma e sempre nova, desta vez tem de sair certo, é
naquele tom que aquela frase tem de ser dita ou fecha-se o palco e deixa-se o
vazio reinar. Acaba-se já aqui o que soa mal, o que não é perfeito não há de
ser repetido, já é mau que tenha sido dito uma vez naquele palco que escolheste
para ver encenar a tua vida.
Sentamo-nos mais uma
vez na cadeira do realizador e estendemos a mão. E se não vier ninguém, já te
perguntaste? Não. Sabes que virá sempre alguém. Vêm porque acham que são elas
que vão conseguir acertar no tom perfeito, tornar a tua construção única, a
peça finalmente encontrada depois de tanto procurar. E não percebem que nunca
serão elas porque és só tu e só precisas de ti e de ir experimentando rostos em
fatos diferentes para te distraíres enquanto elaboras na sofisticação crescente
do teu cenário. Tu crias e tu destróis. Tu iluminas a boca de cena e tu fechas
os cortinados. E mesmo quando o afirmas, riem-se, seguras, a dignidade intacta
de quem ainda não viu as luzes quando se apagam e o vazio do que tens para lhes
oferecer. Todas irão. Até as que te amaram para conseguirem ficar. Amaste-as
por isso, mas ainda assim notaste o momento primeiro da fratura, ínfima, maior do que tu,
depois, prestes a engolir-te, quando, naquele momento, sentiste que não era ela, nenhuma delas, com o seu amor enlatado, pronto a servir, não vá vir a
fome, não vá vir a guerra.
Porque és sempre só
tu. Com as tuas alegrias e tristezas, com os teus momentos inspirados e as tuas
banalidades. É sempre, só, sobre ti. Nenhuma delas pode tomar o lugar que é teu
e nenhuma se pode comparar a ti.
Porquê deixá-las vir,
seguras e cheias de dignidade, para as deixar ir destruídas? Porquê a
crueldade? Tens de te alimentar e nunca se sabe. A fome pode vir. A guerra pode
vir. Precisas delas e precisas dos teus enlatados.
RD, 26.07.2012