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quarta-feira, 11 de julho de 2012

Das rainhas e das coroas


Cheguei ao pé de ti ensopada em sangue e lágrimas. Tu pegaste-me ao colo, despiste-me devagar, a soltar a roupa como se tivesses medo que a pele viesse atrás. Lavaste-me com o cuidado que se dedica a um pequeno ser frágil. As tuas mãos de homem tornaram-se leves e suaves. Dedicaste horas a lavar-me, um pano macio, a água tépida. Secaste-me e sentaste-me entre as tuas pernas para me escovar os cabelos. Tiraste os espinhos que se enrolavam nos nós, tiraste as ervas secas. No fim, só cabelo a cair-me nas costas.

Deste-me água como se eu me tivesse esquecido de como a beber. Eu vi todos os teus gestos, mas olhava a distância. Perdida ali onde te encontrei, perdida onde me perdi. Tu falavas comigo devagar e eu não ouvia o que me dizias.

Deitaste-me na tua cama e amaste-me. Sempre devagar, a vigiar cada pestanejar meu, a vigiar a minha respiração. Com as tuas mãos percorreste todas as feridas. Com os teus dedos verificaste  a cada momento se o sangue me corria nas veias. Vigiaste cada pequeno movimento meu para verificar se não eram espasmos de dor. Sentia-te em mim como a única ligação à vida, sentia a tua excitação como a vida que me tentavas dar a cada vez. Sem outra cura que a do teu corpo, aninhavas-me em ti e o meu sono sobressaltado de terrores indizíveis encostava-se à tua firmeza, ao teu sossego e dali não caía.

Esperaste sem um sinal de impaciência. Viste-me descontrair os músculos da cara, mesmo que ainda não falasse. Sentiste o meu corpo a entregar-se às tuas mãos, mesmo que não suspirasse. Viste-me levantar a mão para te tocar, mesmo que não sorrisse. E, no teu sono tranquilo, percebeste quando deixei de soluçar.

Um dia, acordei com o sol a bater-me na cara e quis falar. Vi a explosão de flores no jardim e quis bater palmas. Vi a tua beleza espalhada na cama, o teu sono tranquilo. Quis sorrir e tu acordaste à procura dos meus olhos.

Nesse dia, vestiste-me, como todos os dias. Levaste-me pela mão à frente dos teus e puseste-me uma coroa na cabeça. Eu, embriagada por ver de novo, por sentir de novo, por ter vontade de te tocar e de acariciar a pele como se as feridas fossem tuas.

Quis sair e ver o mundo. Quis rir com os animais que brincam, rir com as plantas que crescem. Tudo me parecia vivo, dentro e fora de mim. Tu não quiseste. Disseste-me que o mundo lá fora, para mim, nunca mais. Que me tinhas resgatado, que me tinhas recuperado quando eu já não era. Que a vida que eu vivia agora tu a tinhas criado para mim, dia após dia, tantos dias – quantos dias? A respirar devagar para ter a certeza de que eu conseguia acompanhar o teu ritmo.

Agora, à sombra destas pedras sagradas, dispo as túnicas que me vestiste, sinto o linho a cair-me em cima dos pés. Tiro a coroa que se tornou demasiado pesada, que me esmaga a cabeça, que se enterra nos ombros, que me força os pés a entrar na terra. Pouso a coroa no centro das pedras e deito-me assim, nua, de cara no chão e sou eu outra vez, só eu, o princípio e o fim, a vida que tenho ainda de criar e que é minha, mesmo para amanhã ser desfeita, para perceber que tens razão, que, sozinha, sou demasiado frágil para o mundo.

E sei que tu, despido na cama que foi nossa, compreendes. O teu sono hoje não vai ser sossegado. Mas sabes que viver com uma coroa pesada ia acabar por me matar de qualquer maneira. Em vez de espinhos dos cabelos, ias arrancar-me pedras preciosas cravadas na pele.

Se, de novo arranhada e chorada pela luz cruel do mundo cá fora, os meus passos me vão levar de volta a ti? Se me vais despir de novo, lavar de novo, amar de novo, de um amor feito de diligência e de vontade? Sabendo que, a cada vez, quando a ilusão de ser forte for minha, voltarei a estas pedras sagradas, para delas voltar ao mundo?

Agora sinto-me forte. A memória da fragilidade não me abandona e ainda assim. Se torno, se tornas, o que interessa?

RD, 11.07.2012

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