... não reza a história. Dos trágicos, sim. Olhos
furados, filhos esventrados, ele mata-se, ela mata-se, afinal foi engano, ainda
assim estão os dois mortos.
Mas os enjeitados, para onde vão?
Discutimos algumas possibilidades, lembras-te? Quando
ainda acreditávamos que talvez pudesse ser. Que, se nos esforçássemos muito e
pensássemos bem e tivéssemos imaginação, encontraríamos o como de o nosso amor
ser. É o que nós fazemos, todos os dias: encontramos soluções. Como não
havíamos de encontrar uma para o nosso amor, sem o enjeitar? Talvez não te
estivesses a esforçar o suficiente. Talvez eu não me estivesse a esforçar o
suficiente. Assim, as culpas, à vez, a iludir o que mais tarde acabámos por
aceitar: o nosso amor não tinha lugar. Não podia ser. Era indesejado. Era
despropositado. Era irregular. Ninguém o queria. Nós não o queríamos.
O que fazer a um amor cheio de vida, todo potência, que
ainda não sabe andar, não sabe ser, não é desejado?
Abandoná-lo à beira da estrada e esperar que o levem?
Deixá-lo morrer à fome? Sublimá-lo numa solução poética imaginada com amor para
acabar com o amor?
Porque, dos muitos erros de cálculo que cometemos, esse
foi o que nos continua a perseguir: não imaginámos que ele pudesse existir para
além da nossa vontade. Que pudesse ser sem nós.
Cometemos todas as ousadias que podíamos. Dissemos-lhe:
vai-te embora. Não te queremos. Conseguimos viver sem ti. Virámos as costas e
afastámo-nos devagarinho, um pé pousado devagarinho à frente do outro para não
ouvirmos os nossos passos. Como se o eco dos nossos passos nos pudesse
ligar ainda, um fio azul de som, esticado, cada vez mais esticado, mas sempre a indicar o caminho.
Imaginas tamanha temeridade? Eu sei que sim. Pagas por ela todos os dias, como eu.
Nunca mais viver com os dois pés do mesmo lado. Nunca
mais estar inteiro em sítio algum. A exigir a tudo e a todos a correção
permanente, a não aceitar erros de ninguém.
Como podemos? Se vivemos na fratura do que fizemos. Se
escolhemos fingir que a melhor parte de nós não vive. Como podemos aceitar mais
falhas sem ruir? Tudo tem de estar sempre inteiro à nossa volta, condenados à
correção permanente dos erros dos outros, dos nossos pequenos erros. Comparado
com este, todos os nossos erros são pequenos. Não podemos.
Anos depois, continuamos sem conseguir responder: para
onde vão os amores enjeitados? Para o limbo dos amores, à espera que um dia nos
ultrapassemos, sejamos maiores do que somos e o resgatemos? E os que
nunca foram resgatados? Continuarão lá à espera do tiro misericordioso? Cheios
de si, tanto amor, nem percebem que ninguém os quer.
Aqui, onde estou, sei o que pagámos. Não sei o que ainda
pagaremos, mas sei que é para nós pior viver sem ele do que para ele viver sem
nós.
RD, 24.09.2015