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quarta-feira, 14 de março de 2012

Pára.

É ali que tu paras. É ali que decides. Sabes, de um saber feito da experiência de milhares de outros antes de ti, de milhares de anos atrás de ti, o que acontece. E ainda assim, a tua decisão, mil vezes testada, mil vezes vivida, não é mais fácil.



É ali que tu paras. Mas sabes que não podes continuar ali parado muito tempo, porque alguém decide por ti, um empurrão apressado e já estás no caminho que não escolheste. O que não seria mau, afinal. Assim, alguém teria decidido por ti e tu poderias ilibar-te da decisão, das consequências. Sabes a cobardia da solução, mas ali, onde estás, até tu consegues aceitar ser cobarde. E no entanto, ninguém chega. E tu tens de decidir ou então  a vida vai passar por ti e tu ali parado. A conjecturar. Como seria se tivesse escolhido o outro caminho?

A dicotomia é banal: o seguro, o conforto, o esperado de ti. O que tu controlas e não te ameaça. O que é planeável e previsível. Ainda assim, não é fácil e não aceitas que te julguem por teres escolhido o mais fácil, tal como tu julgaste muitos antes de ti. O conforto paga-se sempre muito caro, deixas ali, naquele lugar, naquele momento, a parte de ti que sabe voar. E escolhes ficar preso ao chão para sempre. E é legítimo que o faças, consegues defendê-lo. É isso que garante o funcionamento do que alguém decidiu dever funcionar assim. É isso que garante a segurança dos que te rodeiam e dos que dependem de ti. É isso que os mantém presos a ti e e ao chão, numa cadeia interminável de segurança, todos amarrados uns aos outros.

Gostavas de  saber se toda a gente terá passado por ali, em algum momento da vida. Gostavas de ver os dados estatísticos. Talvez pudesses tomar uma decisão fundamentada nos dados.

E é tão fácil escolher o outro caminho, é o mais fácil de escolher. É fácil justificar, também. Tu mereces. Sempre fizeste o que esperavam de ti, até melhor. Toda a gente tem direito a tentar aquele caminho, uma vez que seja na vida, milhões de vezes na vida do planeta. E sais de ti e és maior e sabes o que é voar e viver com os pés libertos do chão. E tudo é luminoso e inteiro e pleno. Como não saber o que é sentir-se inteiro uma vez na vida?

Mas também sabes que terás de voltar. E confessas, afinal, que não é a primeira vez que estás ali e que já escolheste aquele caminho antes. E que te lembras da leveza, todos os dias. Tal como te lembras da pele esfacelada quando voltaste ao chão, das feridas em carne viva que te deixaram cheio de marcas. Da dor do peso. 

Lembras-te disso tudo e ainda pensas em dar um passo e experimentar de novo. Estará a pele suficientemente forte? E assim que começares a senti-la rasgar-se? Aguentas a dor do peso de novo? Sim, tu sabes que, por aquele caminho, tens sempre de voltar atrás. Os outros não te deixam lá ficar. Se deixassem, teriam todos de ir também.

Tudo isto tu sabes e por isso continuas parado. Sabes demais. Talvez só não saibas ir além do medo. 

RD, 14.03.2012

quarta-feira, 7 de março de 2012

Sabes-me a sal

Sabes-me a sal. Na tua pele fica o salgado de todos os mares em que nadaste, tu e água, numa dança antiga, feita pelos deuses para nos deixar sair por momentos da nossa obrigação de andar. Tu nadas e a água nada contigo, acaricia-te a pele, deixa que entres nela como se sempre te tivesse esperado. Na água, transformas-te e já não distingo onde um e outro acaba e começa.


Sabes-me a sal. O sol seca-te, o sal faz uma película branca que percorro com a ponta dos dedos. Os grãos de areia quente ficam agarrados à minha pele e são meus. O que há instantes era teu entra-me agora na pele. O calor do sol na tua pele e a areia morna transformam em névoa tudo o que nos rodeia e somos só nós os dois, pele, areia, sal.


Sabes-me a sal. Mesmo quando já nos afastámos do oceano e a água doce, ciumenta, tentou tirar-to da pele. O algodão da toalha arranha-te sem piedade, quer tirar-te aquele último grão de areia que se prendeu ali na tua pele. Mas ele resiste e fica lá, aguarda pelos meus dedos, para lhes dar uma última memória do calor.

Sabes-me a sal. Muito tempo depois de termos visto o mar é a sal que me sabes. Muito tempo antes de te ver, é o sal que antecipo. Não um sal de lágrimas, porque essas se perdem na imensidão da água. Não um sal artificial, desinfetado, pronto a consumir. Não, um sal em bruto, puro, inteiro. Um sal saído das pedras e embalado pela água. Um sal que só se mistura na tua pele e em todo o resto é insolúvel. Sabes-me a sal.

RD, 07.03.2012

sexta-feira, 2 de março de 2012

A arte de reciclar


Abriu o velho portão - se é que se podia chamar portão ao conjunto mal amanhado de peças que não foram feitas para estar juntas. As placas de metais diferentes agarradas a tábuas de madeiras das mais diversas origens misturavam-se com a cor de tintas de muitas décadas agarrada às mãos dele. Como se as mãos dele fossem também um dos materiais que tinha domado ao longo da vida, e se tivessem tornado parte deles. Tortas, sujas de manchas que já nada lavava, marcadas de cortes de um ou outro ferro mais resistente a ser dobrado. 
Lá dentro, a luz era pouca, mas ele estava habituado a trabalhar naquela semi-penumbra, com o pó filtrado pelas gretas nas paredes e o cheiro intenso a óleo, tinta, limalha.
Toda a vida reciclara objetos. Muito antes das preocupações passivas que agora ocupavam toda a gente. Nunca deitara uma lata fora, podia cortá-la a meio e usá-la em inúmeras novas construções. Tinha sido alvo de chacota mais vezes do que se podia lembrar. Diziam que as suas construções eram bizarras,  que não tinham utilidade, porque, mesmo que funcionassem, ficavam tão feias e desconjuntadas que ninguém lhes via utilidade para além do aspeto mal conjugado. 
Agora veriam. E viriam ter com ele. De todo o lado. Porque o que ele tinha conseguido reciclar mais ninguém conseguira ainda. E o mundo estava a ficar cheio até ao insustentável de amores no lixo. Não havia sistema de relações humanas que suportasse tanto desperdício e o tempo de uso era cada vez menor. Já não chegava ao fim da garantia. Dois anos era já um amor saudável e robusto, muitos ficavam pelo caminho. Não sobreviviam. E já nem eram só os mais fracos que pereciam. Ultimamente, parecia-lhe já epidémico. Mesmo aqueles que pareciam eletrodomésticos alemães, feitos para durar uma vida, ou pelo menos 20 anos, que vinte anos já conta como uma vida, mesmo esses avariavam. Paravam. Deixavam de funcionar. Eram abandonados à beira da estrada pelos mais apressados, recolhidos pelos mais conscienciosos. Um serviço de recolha de amores avariados, precisava de acrescentar isso à sua lista. 
E todos viriam. Ela já não me ouve. Um ouvido para substituir. Ele já não me toca. Umas mãos para arranjar. Ela não tem tempo para mim. Vejamos o colo. Tem o colo avariado, qualquer amor precisa de um bom colo. Como precisa de ouvidos que funcionem bem. E de mãos que saibam sentir,  excitar e acalmar e devolver a vida ao que está adormecido. 
Como as dele. Tinha trabalhado as suas mãos nos materiais em que tocara e todos tinham saído transformados, materiais e mãos, a partilhar a dureza de uns, a agudeza de outros, o calor daquelas que agora estendia para dar vida.
Olhou para a prancha de trabalho. Agora todos viriam. Só precisava de lhe tocar com as suas mãos e fazê-la acordar, estremunhada, o sorriso quente, a antecipar o desejo dele, menina de novo, a enrolar-se mulher nele. Tinha a certeza de que resultaria. O aspeto não era bonito. Tinha substituído cuidadosamente todos os pedaços nela que deixaram de funcionar. Por metal, onde precisava que ela fosse mais resistente. O metal quente misturava-se na carne harmoniosamente. Por vidro, onde precisava que ela fosse mais transparente. Por madeira, onde a queria mais suave. Reciclara o seu amor. Agora bastava tocar-lhe e tinha a certeza de que ela acordaria e seria menina de novo, os olhos de vidro brilhantes de amor por ele, a garganta de madeira e cordas a ronronar de vontade de o receber. O seu amor viveria de novo, ele conseguia reciclar tudo.


RD,  02.03.2012

A arte de reciclar


Abriu o velho portão - se é que se podia chamar portão ao conjunto mal amanhado de peças que não foram feitas para estar juntas. As placas de metais diferentes agarradas a tábuas de madeiras das mais diversas origens misturavam-se com a cor de tintas de muitas décadas agarrada às mãos dele. Como se as mãos dele fossem também um dos materiais que tinha domado ao longo da vida, e se tivessem tornado parte deles. Tortas, sujas de manchas que já nada lavava, marcadas de cortes de um ou outro ferro mais resistente a ser dobrado. 
Lá dentro, a luz era pouca, mas ele estava habituado a trabalhar naquela semi-penumbra, com o pó filtrado pelas gretas nas paredes e o cheiro intenso a óleo, tinta, limalha.
Toda a vida reciclara objetos. Muito antes das preocupações passivas que agora ocupavam toda a gente. Nunca deitara uma lata fora, podia cortá-la a meio e usá-la em inúmeras novas construções. Tinha sido alvo de chacota mais vezes do que se podia lembrar. Diziam que as suas construções eram bizarras,  que não tinham utilidade, porque, mesmo que funcionassem, ficavam tão feias e desconjuntadas que ninguém lhes via utilidade para além do aspeto mal conjugado. 
Agora veriam. E viriam ter com ele. De todo o lado. Porque o que ele tinha conseguido reciclar mais ninguém conseguira ainda. E o mundo estava a ficar cheio até ao insustentável de amores no lixo. Não havia sistema de relações humanas que suportasse tanto desperdício e o tempo de uso era cada vez menor. Já não chegava ao fim da garantia. Dois anos era já um amor saudável e robusto, muitos ficavam pelo caminho. Não sobreviviam. E já nem eram só os mais fracos que pereciam. Ultimamente, parecia-lhe já epidémico. Mesmo aqueles que pareciam eletrodomésticos alemães, feitos para durar uma vida, ou pelo menos 20 anos, que vinte anos já conta como uma vida, mesmo esses avariavam. Paravam. Deixavam de funcionar. Eram abandonados à beira da estrada pelos mais apressados, recolhidos pelos mais conscienciosos. Um serviço de recolha de amores avariados, precisava de acrescentar isso à sua lista. 
E todos viriam. Ela já não me ouve. Um ouvido para substituir. Ele já não me toca. Umas mãos para arranjar. Ela não tem tempo para mim. Vejamos o colo. Tem o colo avariado, qualquer amor precisa de um bom colo. Como precisa de ouvidos que funcionem bem. E de mãos que saibam sentir,  excitar e acalmar e devolver a vida ao que está adormecido. 
Como as dele. Tinha trabalhado as suas mãos nos materiais em que tocara e todos tinham saído transformados, materiais e mãos, a partilhar a dureza de uns, a agudeza de outros, o calor daquelas que agora estendia para dar vida.
Olhou para a prancha de trabalho. Agora todos viriam. Só precisava de lhe tocar com as suas mãos e fazê-la acordar, estremunhada, o sorriso quente, a antecipar o desejo dele, menina de novo, a enrolar-se mulher nele. Tinha a certeza de que resultaria. O aspeto não era bonito. Tinha substituído cuidadosamente todos os pedaços nela que deixaram de funcionar. Por metal, onde precisava que ela fosse mais resistente. O metal quente misturava-se na carne harmoniosamente. Por vidro, onde precisava que ela fosse mais transparente. Por madeira, onde a queria mais suave. Reciclara o seu amor. Agora bastava tocar-lhe e tinha a certeza de que ela acordaria e seria menina de novo, os olhos de vidro brilhantes de amor por ele, a garganta de madeira e cordas a ronronar de vontade de o receber. O seu amor viveria de novo, ele conseguia reciclar tudo.


RD,  02.03.2012