Nenhum dragão te salva, filha. Quem me
dera ter-te dito isto há muitos anos. Mas achei que não o devia fazer, não me
senti no direito de te impedir de sonhar e acreditei que serias sempre moderada
nos sonhos. O que digo eu? Eu sei que os sonhos não são moderados, ou seriam
projetos. Já imaginaste? Toda a gente a dizer: então o que projetas tu? Esta
noite tive um projeto assustador. Não, não queria que a tua vida fossem só projetos.
E vi-te tão forte, criei-te tão forte. Olha o que fizeste, olha como sempre
conseguiste. E no entanto. Estás agora aqui sentada a olhar para mim, os olhos
feitos água, outra vez vida e água, como no início, como quando estavas dentro
de mim e eu protegia-te da dor com o meu corpo. Sabes que nunca me deixei
sofrer enquanto estava grávida de ti? Nem uma pontada mais funda, nada. Queria
que conhecesses o estado único de proteção absoluta. Mas não foi um dragão,
filha. Foi vida e água.
Sabes, eles são assim, os dragões, está na
natureza deles não nos poderem salvar. Tu sentas-te e vês o rasgo no céu, a
sombra da asa, o calor súbito, um vento que fica a despedir-se do que passou. E
tu aqui sentada com o teu sofrimento, como se quanto mais sofresses, mais ele
fosse visível ao longe, lá de cima, pareces um farol de sofrimento, sempre
aceso, à espera de salvamento. Eles não
virão, filha. Nunca vêm. Se foi cruel deixar-te acreditar que existem? Talvez.
Mas eles existem e isso não to podia negar. Os dragões existem, filha. Mas tens
de os saber usar. Vês? Os teus olhos brilham de novo, afastam a água. É um
sonho que vem aí ou um projeto?
Tu podes sentar-te assim, como agora, e
olhar o céu. Podes fazê-lo até todos os dias. Durante dez minutos, não mais. E
olhas o azul e vês o rasgo, sentes o frio da sombra, o calor do bafo, o vento
que se despede. E nesses momentos sonhas. E quando tiver passado, quando
acabar, estás aqui na mesma. Ele não te leva às costas para sobrevoar o mundo e
veres as suas maravilhas e os seus terrores. Não, tu vives no meio das
maravilhas e dos terrores e és parte deles. Ele não te cura com a baba mágica.
A dor é tua e enquanto a acarinhares como parte de ti, ela vai continuar aí. Do
que tens medo, filha? De seres menos sem a tua dor e sem o dragão? És menos
dor. Tu não és a dor. Deixa-a ir. Amarra-a na ponta da cauda quando ele passar.
Não, não te estou a dizer que, afinal, ele te leva a dor. Mas tu podes mandá-la
embora. Sim, estou a confundir sonho e projeto, tens razão. Sabes que as mães
encontram sempre forma de dar utilidade às flores.
Fica aqui, tens os teus dez minutos de
dragão. Ele só passa. Não te leva. Sente o alívio de não seres levada para onde
não queres, mesmo que no meio do sofrimento qualquer sítio te pareça bom.
Passada a dor, vais querer escolher tu.
Se estou a manipular os poderes do dragão?
Claro que sim, todas as mulheres o fizeram antes de mim. E tu vais aprender a
fazê-lo. Há as que sonham e acreditam no sonho e dizem que os montam e são
salvas. Se vivem no sonho, não consegues falar com elas, vais parecer sempre um
peixe a abrir e fechar a boca sem som. E não é a tua missão tirá-las de lá onde
vivem. Também há as que negam a existência dos dragões. E mais uma vez, não é
teu papel mostrar-lhes o que não querem ver. Tu sabes que eles passam. Basta
olhar. E sabes que vê-los passar, sentir o seu calor, o seu frio, a sombra da
asa, o vento da cauda, é o que podes ter. Não tentes agarrá-lo. Fica aqui
sentada. Quando passar, verás que tudo te parece diferente e que a tua dor,
afinal, se esqueceu de ser. E mesmo que
percebas que nem eu estou aqui já há muito tempo, estás tu e tu és e isso chega-te.
Aprende a usar o sonho. Dez minutos por
dia. E não o confundas com um projeto.
RD, 27.06.2012
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