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quinta-feira, 26 de julho de 2012

Não vá vir a fome, não vá vir a guerra.

Ao meu amigo Zé Augusto, dono da primeira frase deste texto.

Não há maior crueldade do que deixarmos vir até nós alguém, seguro e digno, sabendo que não temos nada para lhe dar. E no entanto sentimo-nos confortáveis ao fazê-lo. Sentados, de perna cruzada, encostamos as costas à cadeira para fixarmos a ilusão de que o ato que vamos cometer não contém vacilação. Sorrimos e estendemos o braço, damos a mão, puxamos para junto de nós quem decidiu, na posse de toda a sua vontade, que quer vir para junto de nós. E na ilusão que criámos podiam ter entrevisto que o papel que lhes temos destinado é só esse: o de assumirem a sua vontade para vir até nós, seguir um guião mil vezes representado, sucesso de bilheteira de séculos. O papel que lhes destinamos é vazio de conteúdo. Peça igual a tantas peças numa construção que é nossa, que não reconhece rostos nem vozes.

Não temos nada para dar. E no entanto, estendemos a mão. Não vá vir a fome, não vá vir a guerra. Mandamo-las embora porque precisamos de correr as cortinas, limpar o palco, não estava suficientemente bem, não era bem aquele tom. Mas se o Hamlet foi tantas vezes encenado, porque não posso ser eu a Ophelia? Só mais uma, entre tantas? Não podes, não saiu bem, e a Ophelia nunca é a mesma, mas tem de ser cada vez mais perfeita e tu não acrescentaste nada à anterior. Mas se ela morre afogada, mil vezes afogada... Ainda assim. Ou por isso mesmo. Tens de ir embora, o que tinha para ti já não é, serviu-me para imaginar o que poderia ser melhor e diferente, mas não eras tu. Era o inefável, o que eu criei na minha cabeça e que quis preencher contigo, para ver se calhava. Se por acaso. Um golpe da fortuna. E agora? E agora vais. Agora não tenho nada para ti, nunca tive, só esta vontade de ver se encaixavas ali, naquele pedacinho da minha elaboração que precisava de uma cara. Mas não posso ficar? Se não fizeres barulho, fica por aí. Não vá vir a fome, não vá vir a guerra. Ficas ali na prateleira, ao lado daqueles enlatados, tu própria agora um enlatado.

E voltamos a caçar. Precisamos de mais, de melhor, não queremos usar os enlatados guardados no fundo da despensa, a carne tem de ser fresca, outra cara, outra voz, as mesmas palavras, a peça é sempre a mesma e sempre nova, desta vez tem de sair certo, é naquele tom que aquela frase tem de ser dita ou fecha-se o palco e deixa-se o vazio reinar. Acaba-se já aqui o que soa mal, o que não é perfeito não há de ser repetido, já é mau que tenha sido dito uma vez naquele palco que escolheste para ver encenar a tua vida.

Sentamo-nos mais uma vez na cadeira do realizador e estendemos a mão. E se não vier ninguém, já te perguntaste? Não. Sabes que virá sempre alguém. Vêm porque acham que são elas que vão conseguir acertar no tom perfeito, tornar a tua construção única, a peça finalmente encontrada depois de tanto procurar. E não percebem que nunca serão elas porque és só tu e só precisas de ti e de ir experimentando rostos em fatos diferentes para te distraíres enquanto elaboras na sofisticação crescente do teu cenário. Tu crias e tu destróis. Tu iluminas a boca de cena e tu fechas os cortinados. E mesmo quando o afirmas, riem-se, seguras, a dignidade intacta de quem ainda não viu as luzes quando se apagam e o vazio do que tens para lhes oferecer. Todas irão. Até as que te amaram para conseguirem ficar. Amaste-as por isso, mas ainda assim notaste o momento primeiro da fratura, ínfima, maior do que tu, depois, prestes a engolir-te, quando, naquele momento, sentiste que não era ela, nenhuma delas, com o seu amor enlatado, pronto a servir, não vá vir a fome, não vá vir a guerra.

Porque és sempre só tu. Com as tuas alegrias e tristezas, com os teus momentos inspirados e as tuas banalidades. É sempre, só, sobre ti. Nenhuma delas pode tomar o lugar que é teu e nenhuma se pode comparar a ti.

Porquê deixá-las vir, seguras e cheias de dignidade, para as deixar ir destruídas? Porquê a crueldade? Tens de te alimentar e nunca se sabe. A fome pode vir. A guerra pode vir. Precisas delas e precisas dos teus enlatados. 

RD, 26.07.2012

5 comentários:

  1. Que texto maravilhoso para descrever um mistério, um drama da humanidade, uma pungente verdade.
    Obrigada.

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    1. Eu é que sou obrigada. Sobretudo a escrever melhor, responsabilzada que me sinto com estes comentários generosos. :)

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  2. Querida Regina, está escrito no feminino que vai até ao masculino mas podia ser ao contrário. Tanto faz. E sei que é assim porque me revejo nele. E é bom que me reveja porque, apesar de todas as suspeitas, nunca ninguém me tinha dito isto assim, de uma forma tão peremptória, tão real, tão simples e directa.

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    1. Querida Antígona, obrigada. É verdade, faço un saltos pouco discretos entre o masculino e o feminino, pouco interessada que estava no género. E entre o eu e o tu e o nós também. Porque às vezes, somos todos. :)

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  3. Belo e trágico...como todas as obras Épicas.

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