À Ana Paula Dias, com quem gosto de fabricar frases.
Ele vendia frases. Desde que se lembrava. Vendia frases de todos os tipos: longas, curtas, simples, complexas, da polaridade necessária, tristes, alegres, sem tom, ao gosto e urgência do cliente. O seu lema, inventado muito antes dos novos sapateiros e das casas de fotografias, era “frase no minuto”. Muitas vezes, nem um minuto levava.
Sentava-se sempre à sombra da mesma árvore, atrás de uma velha mesa desmontável que carregava de manhã e ao fim do dia. Não que escrevesse muito, normalmente as frases que servia no minuto eram apenas ditas, recolhidas pelos clientes nos ouvidos e pagas em dinheiro, sem recibos nem mais papelada envolvida. Agora começava a preocupar-se, talvez precisasse de comprar uma caixa registadora, um aparelho de multibanco, daqueles que se levam como a mesa transportável. Não sabia como registar a sua actividade, mas a fila cada vez maior de clientes não iria deixar que continuasse por muito tempo sem oficializar aquele ofício. Quanto ao multibanco, sentia-o cada vez mais preciso. Havia frases muito caras, daquelas que podem mudar a vida das pessoas. E havia os que pediam muitas frases, conversas inteiras, ou textos, apesar de não ser essa a sua especialidade. Raramente aceitava estas encomendas, que não podia servir no minuto. Preferia as frases soltas, fluidas, adequadas ao pedido da circunstância, que não se vagaravam por ali. Produzia-as, vendia-as e não pensava mais nelas.
Parecia, a quem esperava na fila, pelo que ouvia e pela velocidade a que os da frente eram atendidos, que tinha as frases pré-prontas, assim como quem tem hambúrgueres congelados já dentro do pão e os coloca numa grelha quente, para servir de seguida. Frases prontas a usar. Como se tivesse um banco de dados gigantesco, assim organizado em categorias: palavras, temas, situação, destinatário, objectivo, tom. E num minuto cruzava estas categorias e produzia uma frase, que tinha ainda a qualidade de ser adequada a quem a iria utilizar. Como se lhe bastasse olhar para o cliente para perceber que tipo de frase ele diria na circunstância descrita, apesar de o próprio não o saber. Faltavam-lhes as palavras, ele dava-lhes forma e entregava-as em filinha devidamente ordenada.
Para clientes muito importantes, os cmi, tratava do assunto pelo telefone. Já os conhecia, queriam privacidade, nada daquela exposição em fila. Os políticos eram grande parte dos seus cmi. Até tinha marcado uma hora para atendimento telefónico, afinal não podia passar o dia em casa à espera que uma frase sua fosse necessária. O último a ligar tinha ficado especialmente satisfeito. Ligara-lhe já tarde, fora da hora de expediente telefónico, na urgência da crise social. O que digo ao povo? Diga-lhes: «Está tudo bem, não há motivos para alarmismos.» Como os outros clientes, o político repetiu várias vezes a frase, a pesar-lhe as palavras, antes de desligar. Com o envelope entregue no dia seguinte, veio a notícia em primeira mão, dada pelo secretário do ministro: «Está tudo bem, não há motivos para alarmismos.» Percebeu a eficácia da frase que produzira. Ele próprio se sentia confortado, descansado, aliviado. Estava tudo bem.
Naquele dia estava especialmente satisfeito. Tinha produzido frases variadas e algumas até com um certo estilo. Não muito, se não não seriam adequadas aos seus clientes sem palavras. Mas assim como se os seus clientes estivessem num dia particularmente feliz para dizer as frases certas. Tinha tido poucos pedidos de carácter prático. Começara com uma cliente, jovem ainda, de mãos irrequietas, que lhe pedira uma frase para afastar uma amiga indesejável. «Já não quero ser tua amiga». Ela olhou para ele, duvidosa. Não acha muito infantil? Perguntou. Acho, respondeu. Mas é a verdade e funciona. Se tiver uma frase melhor, não pague. Ela pagou, desviou-se da fila a repetir a frase, como se lhe tomasse o peso.
O cliente seguinte era um menino, quase adolescente, magro, de olhar doce. Preciso de dizer à minha mãe “obrigado”, mas de uma maneira bonita. Diz-lhe: «Amo-te, mãe.» O menino ia pagar as moedas que tinha juntado para aquela emergência, mas recolheu a mão. Isso chega a ser uma frase? Não, se quiseres não pagues. O menino pagou e desviou-se a repetir a frase como se lhe antecipasse o efeito. Antes daquele cliente que agora se demorava à sua frente, tinha ainda atendido um escritor, seu velho conhecido, que a ele recorria em momentos de aflição, para o ajudar a sair de um enclave de palavras em que se tinha involuntariamente enfiado. Preciso de uma palavra para acabar o meu livro, irmão. Nem é uma frase, sabes? Não encontro a palavra. Ele sorriu, compreensivo. «Fim». Escreve Fim. Assim? Sim, assim. O outro desviou-se, pousou distraidamente o dinheiro em cima da mesa e lá foi, repetindo: Fim. Fim. Fim.
Aquele cliente era um caso mais complicado. Talvez o único digno desse nome até agora. Sempre encontrara a resposta certa. Mas agora não conseguia responder. Olhou-o longamente, as olheiras negras, o cabelo em desalinho, o olhar parado, à procura naqueles sinais de algum sinal que o ajudasse a encontrar a frase de que o sujeito precisava. Repita lá, por favor, o que me pediu. Ganhava tempo, podia ser que a frase saísse desta vez, que tivesse entrado mal o que ouvira primeiro, alguma comunicação que falhou, uma sinapse que não funcionou, um dado que ficou de fora. Não quero que ela vá. E não quero que ela fique. Não sei como lho dizer. Ele limpou a garganta, uma tosse baixa, seca, mais tempo ganho. E de repente soube. Não era a primeira vez que tinha de ser ele a decidir pelos outros. Que lhe pediam que decidisse. E, tal como das outras vezes, teve de se lembrar que quem fazia o pedido já sabia o que queria, só lhe pedia que desse voz à sua incapacidade de o tornar verbo. Mas desta vez tinha de decidir pelos dois. Olhou-o nos olhos e disse-lhe: «Vai. Vai agora. Não te demores mais aqui.» É isso que tem de lhe dizer. O outro baixou a cabeça e assentiu. Pousou uma nota em cima da mesa, sabia o valor do que tinha pedido.
Arrumou a mesa, levou-a de baixo do braço e afastou-se, para espanto da longa fila de clientes que aguardavam a sua vez, certos de serem rapidamente atendidos. De repente, sentiu-se muito cansado. Aquela última frase, aquele conjunto de pequenas frases. E aquele trabalho, que significado tinha, afinal? Fazer pelos outros o que eles se tinham tornado muito preguiçosos para fazer? Dar-lhes palavras que eles conheciam, só porque não sabiam olhar para elas? Usar as palavras deles, de todos os dias e torná-las a frase certa? Isso seria mesmo um ofício digno? Parecia-lhe agora que era um catador de palavras usadas. E as pessoas que ajudara já não justificavam continuar. Teria de encontrar uma frase, talvez de a comprar, para escrever num cartaz «As frases estão esgotadas, não sabemos se voltam.» Talvez funcionasse, já não tinha certezas.
RD, 11.07.2011