Ele estava sozinho. Mas por pouco tempo. Havia sempre uma mulher que precisava de ser redimida, e ele lá ia, já com menos entusiasmo do que antigamente, já mais pesado por tanta redenção. Mas o chamamento não o deixava imune ao canto da sereia de uma mulher a precisar de ser redimida. E ele ia. Elas precisavam dele, coitadas. Havia os votos, claro. Tinha pronunciado os votos. Havia sempre de redimir uma mulher a precisar de redenção, fosse a mesma a vida inteira (nos casos mesmo extremos de difícil remissão), fosse uma diferente todos os dias. O contributo para a humanidade perdida por mulheres perdidas era igual, o peso do seu papel no mundo não se alterava se limitasse os seus poderes a uma mulher carenciada, o que é um pleonasmo, ou se o distribuísse por todas quantas conseguisse. Não se tratava de número. Cada homem cumpre o seu papel na sociedade e não se conta quantas vezes o faz. Só se o faz, e se o faz bem.
Tinha encontrado uma particularmente difícil de redimir. Sobretudo porque não era pecadora. Não que fosse maniqueísta ao ponto de as dividir em santas e pecadoras. Era um homem moderno, e afinal o que interessava era aquela génese delas, aquela natureza deficitária de redenção, que ele possuía em excesso e podia assim compensar o desequilíbrio do mundo. Também não gostava de as chamar carenciadas, vinham logo as feministas e elas agora ganham bem, conduzem camiões e isso tudo. Preferia não lhes chamar nada, tal como os outros membros da sua ordem. Eram cuidadosos. O conhecimento que possuíam acerca da natureza feminina era mantido em segredo, não faziam comentários sobre isso, nem se associavam a conversas grosseiras no café sobre “o que elas precisam”. Todos eles sabiam o que elas precisam. Mas não falavam disso. O silêncio era uma regra da ordem. Redimir sem comentar. E ele sabia bem usar o silêncio como uma arma. Fora por isso que o recrutaram. Sim, homens como ele eram recrutados. Pertencem a uma orgulhosa sociedade secreta, tão secreta que nem eles sabem que existem. Sabem apenas que têm uma missão no mundo: redimir as mulheres. E por ela se regem a vida toda.
Aquela, a tal difícil de redimir, era o trabalho de uma vida inteira. A obra. Porque nem mulher era, o que lhe colocava graves dificuldades. Tardava-se menina, irresponsabilizava-se, e o trabalho dele era protegê-la. E ter paciência, também, porque uma menina com quarenta anos pode ser enervante. Mas ele não se queixava. Mais uma condição para pertencer à ordem. Às vezes questionava-se, em silêncio, acerca da sua missão, da obra da sua vida. Ele era um redentor de mulheres. Mas a ela faltavam-lhe quase todas as características das mulheres. Ele protegia-a. E o papel de um redentor não é o de um pai. Um pai desculpa, mas não educa. Ele tinha a obrigação de educar, faz parte da redenção. E às vezes quase desesperava, perante a recusa dela em crescer. O que é que ela tinha aprendido com ele, afinal? Se fosse realmente mulher, podia talvez ver os resultados da sua obra. Era mãe, sim, mas uma mãe-menina, que depressa entregava a outro colo o boneco que era seu. No colo dele. Não que isso o incomodasse, incomodava-o ver que ela não passava para o nível das mulheres, nível em que a sua mão seria mais visível, o seu trabalho mais evidente. Sabia que não se podiam destacar, mas precisava de alguma validação, nem que fosse interna, do que andara a vida inteira a fazer.
Um dia, encontrara uma mulher que achava que não precisava de redenção, a louca. E esta crença dela era tão poderosa, que ele chegou a acreditar também, ainda que só por uns segundos. Mas nesses segundos viu o seu papel posto em causa, a sua vida sem sentido, a sociedade secreta que afinal não tinha sentido existir, que afinal não existia mesmo, era só um bando de homens que desprezavam as mulheres e que se escondiam atrás do mote da redenção. E decidiu que ela estava errada. Era a mais errada das mulheres. Não podia esconder o estranho que era ela ser pecadora. E ser uma mãe. E não conhecer a culpa. Um ser híbrido, com todas as características do seu género. Toda mulher. O que só provava que ela estava errada. Ela era um erro, a natureza baralhada num momento de criação.
E ele duvidou que ela precisasse mesmo de redenção. Por uns segundos. Os mesmos segundos em que duvidou do seu papel de redentor. Ela própria parecia redentora. E se ele se deixasse redimir? Tornava-se uma mulher? Não, isso já era histeria. Ele era um homem, não se sentia nunca menos do que um homem. Mas tornava-se um homem errado, tal como ela era uma mulher errada. E voltou às suas certezas. Ela precisava de redenção. Talvez um tipo de redenção diferente, especial, aquela própria para quem acha que não precisa dela. E ele ainda tentou redimi-la. Plano que abandonou depressa, porque cada vez que tentava, voltavam aqueles segundos de dúvidas sobre o certo funcionamento do mundo. E via-se a correr o torto risco de se deixar redimir em vez de ser redentor. Era um processo desestruturante, tinha de o entregar, deixar o dossiê para outro. Não que fosse de desistir. Mas ali o objecto e o sujeito misturavam-se, tornavam-se um no outro e ele teve de aceitar que haveria outro membro da sociedade mais adequado para o papel do que ele.
Custava-lhe, o seu currículo era impecável, nenhuma mulher antes ficara por redimir. Mas a falha não era dele, ela era uma mulher errada e essa não era a especialidade dele. Ele tinha a obra de uma vida pela frente, uma mulher a precisar de ser redimida a toda a hora. Que nem mulher era. A outra, a errada, não a redimiu. Mas destruiu-a. Mostrou-lhe quem manda. Afinal, não podia deixar provas de que o processo nem sempre funcionava. E ela não podia continuar a pensar que não precisava de redenção. Outras olhariam para ela. Outras quereriam ser como ela. Sabe-se como as mulheres são. Às vezes, ainda acordava com o sorriso redentor dela nos olhos. Mas virava-se para o lado, os lábios numa linha fina, e pensava: “agora já não sorris”.
RD, 30.06.2011
RD, 30.06.2011
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