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terça-feira, 12 de julho de 2011

Hoje preciso de dizer bem sem mentir

Cansada da minha portugalidade lamurienta, farta da crise, farta de me sentir culpada não sei bem de quê, enganada não sei bem por quem, e mais a crise e a nossa incompetência, decido rumar a sul. Preciso de fazer as pazes com este país ou então de me ir embora. Preciso de um dia sem dizer mal. Não é uma escolha feita de ociosidade. Tenho um convite para trabalho amanhã em Évora, troco a eficácia do “é só uma hora de viagem” pela indulgência de uma noite passada no Alentejo. Preciso de limpar as palavras e só conheço um sítio que tem em mim esse efeito, cuja natureza consegue suavizar-me.

Vejo a primeira planície e já os ângulos cortantes do meu sarcasmo se atenuam, transformam-se em doces curvas, já nem a ironia me tenta. Parece um corpo dourado, deitado, lânguido, lambido pelo sol. Os chaparros espalhados por uma mão indolente acentuam o efeito e já me sinto mais tolerante.

Chego ao hotel e sinto-me bem. As abóbadas altas e brancas deixam passar uma luz quente, misturada com o barro da tijoleira, espalhada nas paredes de pedra. Personalizado, confortável, descontraído. Sinto-me feliz por não ter escolhido um hotel com o design agarrado ao nome. O sintético que vem no conjunto e o preto trendy iriam estragar o efeito planície. Somos recebidos por uma jovem afável que se apresenta pelo nome e nos passa para a mão um copo de chá gelado para bebermos enquanto apresenta o hotel e nos fala com entusiasmo dos restaurantes que recomendam. Nada de check-ins. Recebe-nos e apresenta-nos ao espaço que nos recebe. Não é afectada, não é ruidosa. Bem-educada. Uma alentejana formada numa escola pública, profissional, afectuosa, delicada e alegre. Fala um inglês perfeito, com o único defeito de, nesses momentos, perder a langorosa pronúncia alentejana. Não vejo a falta de rigor que a histeria pré-apocalipse anuncia. Delicada é, para mim, uma palavra importante. Tal como descontraído, sem ser demasiado à-vontade.

Segue-se o restaurante, um dos que nos foi descrito com entusiasmo. O Botequim da Mouraria. Ocupamos os dois únicos lugares livres ao balcão, da lotação total de oito pessoas que a casa tem. Não mais. Oito pessoas servidas pelo Sr. Domingos, que cozinha, conversa connosco, serve-nos a comida no prato. O Sr. Domingos é um profissional delicado, bem-educado, bem-disposto, assobia na cozinha enquanto nos prepara a refeição, diz uma piada com um ar tranquilo, sabe avaliar os limites de cada cliente.

Distraio-me da conversa intermitentemente partilhada ao balcão e ouço-o, num final de frase, afirmar que “isso não diria, seria deselegante”. Sorrio. O Sr. Domingos é isso mesmo, elegante. Sem maneirismos, sem afectação, sem atenções artificiais. Gosta do que faz, recebe-nos sem se impor, envolve-nos na sua delicada e simpática maneira de ser. E ainda não cheguei à comida. O queijo curado com orégãos, os cogumelos selvagens assados, o paio sem um fio de gordura. Tudo da região. Sem nomes compridos nem complicados. Tudo é simples, genuíno e de qualidade. Traz-nos a especialidade da casa, um bife de vitela que partilhamos. Carne e sal, sabe a pasto, a erva seca pelo sol quente do Alentejo. A acompanhar, batatas fritas pala-pala. Estranho acompanhamento numa casa daquelas. O meu franzir de sobrolho dura pouco, até provar a primeira batata. Nunca pensei que batatas fritas pala-pala pudessem ser uma experiência gastronómica extrema. Mas são. Não agridem a boca, não cortam as gengivas, não se enfiam nos dentes. Desfazem-se ao toque da língua contra o céu-da-boca. Fica o vestígio de um sabor que nem a infância iguala. Desculpa, mãe, nem as tuas batatas fritas. Passa-me pela cabeça o pensamento menos positivo de que, depois daquelas batatas, não há mais batatas que me satisfaçam. Empurro a insatisfação antecipada com um gole de vinho tinto, um dos muitos da Cartuxa. Os aromas frutados dançam-me com as sinapses, fazem uma festa colorida. O corpo macio enche-me a boca, aquece-me o corpo, amolece-me as pernas. Fiz as pazes contigo, país.

Volto para o hotel a pé, ao longo das muralhas. A festa dos sentidos continua. Dança na minha cabeça o cheiro da urze batida pelo sol, agora solto pela humidade da noite que cai. Deito-me na cama enorme e fecho os olhos, tento recuperar a sensação da batata a desfazer-se contra o céu da minha boca.

Não vale, dir-me-ão. É batota. É fugir. É comer e beber para esquecer. Não me interessa, dir-vos-ei. É a realidade de que preciso hoje para enfrentar amanhã a ficção do país transformado em lixo. Existe, é tangível, é qualidade real, só possível naquilo que é genuíno, sem sofisticações pechisbequeiras. E é nosso, faz parte de nós. Não posso fugir todos os dias, eu sei. E amanhã volto à minha dependência citadina das filas e das queixas e do país que não funciona. Mas hoje deixem-me. Só quero adormecer a pensar no pequeno-almoço que me espera ao acordar.

RD, 07.07.2011

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