Cansada da minha portugalidade lamurienta, farta da crise, farta de me sentir culpada não sei bem de quê, enganada não sei bem por quem, e mais a crise e a nossa incompetência, decido rumar a sul. Preciso de fazer as pazes com este país ou então de me ir embora. Preciso de um dia sem dizer mal. Não é uma escolha feita de ociosidade. Tenho um convite para trabalho amanhã em Évora, troco a eficácia do “é só uma hora de viagem” pela indulgência de uma noite passada no Alentejo. Preciso de limpar as palavras e só conheço um sítio que tem em mim esse efeito, cuja natureza consegue suavizar-me.
Vejo a primeira planície e já os ângulos cortantes do meu sarcasmo se atenuam, transformam-se em doces curvas, já nem a ironia me tenta. Parece um corpo dourado, deitado, lânguido, lambido pelo sol. Os chaparros espalhados por uma mão indolente acentuam o efeito e já me sinto mais tolerante.
Chego ao hotel e sinto-me bem. As abóbadas altas e brancas deixam passar uma luz quente, misturada com o barro da tijoleira, espalhada nas paredes de pedra. Personalizado, confortável, descontraído. Sinto-me feliz por não ter escolhido um hotel com o design agarrado ao nome. O sintético que vem no conjunto e o preto trendy iriam estragar o efeito planície. Somos recebidos por uma jovem afável que se apresenta pelo nome e nos passa para a mão um copo de chá gelado para bebermos enquanto apresenta o hotel e nos fala com entusiasmo dos restaurantes que recomendam. Nada de check-ins. Recebe-nos e apresenta-nos ao espaço que nos recebe. Não é afectada, não é ruidosa. Bem-educada. Uma alentejana formada numa escola pública, profissional, afectuosa, delicada e alegre. Fala um inglês perfeito, com o único defeito de, nesses momentos, perder a langorosa pronúncia alentejana. Não vejo a falta de rigor que a histeria pré-apocalipse anuncia. Delicada é, para mim, uma palavra importante. Tal como descontraído, sem ser demasiado à-vontade.
Segue-se o restaurante, um dos que nos foi descrito com entusiasmo. O Botequim da Mouraria. Ocupamos os dois únicos lugares livres ao balcão, da lotação total de oito pessoas que a casa tem. Não mais. Oito pessoas servidas pelo Sr. Domingos, que cozinha, conversa connosco, serve-nos a comida no prato. O Sr. Domingos é um profissional delicado, bem-educado, bem-disposto, assobia na cozinha enquanto nos prepara a refeição, diz uma piada com um ar tranquilo, sabe avaliar os limites de cada cliente.
Distraio-me da conversa intermitentemente partilhada ao balcão e ouço-o, num final de frase, afirmar que “isso não diria, seria deselegante”. Sorrio. O Sr. Domingos é isso mesmo, elegante. Sem maneirismos, sem afectação, sem atenções artificiais. Gosta do que faz, recebe-nos sem se impor, envolve-nos na sua delicada e simpática maneira de ser. E ainda não cheguei à comida. O queijo curado com orégãos, os cogumelos selvagens assados, o paio sem um fio de gordura. Tudo da região. Sem nomes compridos nem complicados. Tudo é simples, genuíno e de qualidade. Traz-nos a especialidade da casa, um bife de vitela que partilhamos. Carne e sal, sabe a pasto, a erva seca pelo sol quente do Alentejo. A acompanhar, batatas fritas pala-pala. Estranho acompanhamento numa casa daquelas. O meu franzir de sobrolho dura pouco, até provar a primeira batata. Nunca pensei que batatas fritas pala-pala pudessem ser uma experiência gastronómica extrema. Mas são. Não agridem a boca, não cortam as gengivas, não se enfiam nos dentes. Desfazem-se ao toque da língua contra o céu-da-boca. Fica o vestígio de um sabor que nem a infância iguala. Desculpa, mãe, nem as tuas batatas fritas. Passa-me pela cabeça o pensamento menos positivo de que, depois daquelas batatas, não há mais batatas que me satisfaçam. Empurro a insatisfação antecipada com um gole de vinho tinto, um dos muitos da Cartuxa. Os aromas frutados dançam-me com as sinapses, fazem uma festa colorida. O corpo macio enche-me a boca, aquece-me o corpo, amolece-me as pernas. Fiz as pazes contigo, país.
Volto para o hotel a pé, ao longo das muralhas. A festa dos sentidos continua. Dança na minha cabeça o cheiro da urze batida pelo sol, agora solto pela humidade da noite que cai. Deito-me na cama enorme e fecho os olhos, tento recuperar a sensação da batata a desfazer-se contra o céu da minha boca.
Não vale, dir-me-ão. É batota. É fugir. É comer e beber para esquecer. Não me interessa, dir-vos-ei. É a realidade de que preciso hoje para enfrentar amanhã a ficção do país transformado em lixo. Existe, é tangível, é qualidade real, só possível naquilo que é genuíno, sem sofisticações pechisbequeiras. E é nosso, faz parte de nós. Não posso fugir todos os dias, eu sei. E amanhã volto à minha dependência citadina das filas e das queixas e do país que não funciona. Mas hoje deixem-me. Só quero adormecer a pensar no pequeno-almoço que me espera ao acordar.
RD, 07.07.2011
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