As mães têm sempre razão. Vemos o ar descrente com que os nossos filhos olham para nós quando lhes explicamos o perigo do que querem fazer e sabemos. Sabemos que as nossas mães tiveram sempre razão. Mesmo que os desígnios delas permaneçam insondáveis, tocamos a percepção de uma sabedoria maior, feita do conhecimento da dor, e que nos quer preservar dela. E que sabe sempre o que é melhor para nós, mesmo que pareça contrário ao nosso projecto de vida.
Está determinado que a evolução se faça assim: crescemos a precisar de nos distanciarmos, de construirmos o nosso próprio projecto e às vezes é tão difícil percebermos que projecto é esse, que só o conseguimos construir na oposição ao que esperavam de nós. A mudança pode ser evolução tranquila, só medida em séculos ou numa pequena alteração na organização familiar, ou pode ser revolução inesperada, como se as duas tivessem a mesma raiz e revolução fosse evolução redobrada. Como se evoluir e revoltar-se não fossem afinal movimentos distintos. Com a constante de se fazerem a partir ou contra um mesmo ponto de referência, neste caso, a mãe.
Ela olhou para nós com a atenção que as mães olham, durante horas, dias, meses, anos de um calendário distante resumido numa palavra: infância. Conhece-nos os sinais na pele, conhece-nos o desenho do cotovelo, o sítio em que o cabelo nasce na nuca. Lavou-os, secou-os, tratou-os durante anos. E, se ficou aliviada quando começámos a tratar da nossa própria higiene, por ter ganhado aqueles minutos para ela ou para as tarefas dela, começou a sentir o afastamento de um corpo que cresce e se esconde para crescer. Não deixou, no entanto, de nos olhar nos olhos. E de ver neles a alegria e de recear o momento em que a alegria acabe. Quem dera poder agora pôr-te um creme que te aliviasse, um penso rápido que tapasse o buraco. E de ver neles a dor, que a faz desviar o olhar, impotente, ela, a mãe, de quem a nossa vida dependeu e agora tem de aceitar que as mãos dela não a podem aliviar. Deixa-me massajar-te a barriga, talvez te alivie o coração.
A nossa mãe pode estranhar já não gostarmos daquela comida que nos confortava os dias especiais. Pode não compreender que tenhamos deixado de gostar de ir visitar as tias. Pode não reconhecer os confortos que escolhemos para nós como sendo reconfortantes. Mas conhece os nossos mecanismos mais profundos, aqueles que os outros demorarão a perceber. Conhece a nossa forma de lidar com a frustração. Conhece o ponto em que a nossa determinação acaba. Sabe até onde vai a nossa força. Determina com exactidão o momento em que estaremos cansados e rabugentos, em que não vale a pena argumentar, o ponto em que ela sempre perdeu e nós ganhámos o prémio de fazermos valer qualquer coisa pouco importante, mas que era apenas o exercício da nossa vontade.
Mesmo que deixe de saber dialogar com isso, mesmo que não conheça os mecanismos para nos fazer lutar com a frustração, para nos insuflar mais um bocadinho de vontade quando ela acaba, mesmo que não encontre sequer as palavras para dizer: reconheço-te aí onde estás. É o mesmo sítio onde estavas quando caíste vezes sem conta da bicicleta. É o mesmo sítio onde estavas quando tentaste que as palavras sozinhas se explicassem para ti. É o mesmo sítio onde estavas quando os teus amigos te disseram que já não queriam ser teus amigos. Mesmo que fosse só por dez minutos. É o mesmo sítio onde estavas naquele dia em que vieste para casa e a dor já era nos teus olhos e não nos teus joelhos. Se elas encontrassem as palavras para nos dizer isto seria talvez demasiado fácil. Porque perguntaríamos imediatamente: Sabes? Então diz-me como faço para sair daqui. E elas já não podem saber tanto. Ou sabem, mas nós não as podemos ouvir. Seria demasiado fácil. Talvez as frases sejam as mesmas: não desistas, tu consegues. Não faz mal se falhares. Levanta-te e tenta de novo, tu vais conseguir. Não tenhas medo. Não te escondas. Eu estou aqui. Mesmo quando as mães deixam de estar ali. Estão dentro de nós os gestos que elas fizeram. Estão dentro de nós os buracos dos gestos que não souberam fazer.
Talvez seja demasiado, talvez seja exagero freudiano dizer que nos marcam assim tanto. Afinal, nós crescemos para sermos auto-suficientes e essa auto-suficiência deve incluir a capacidade de olharmos para os nossos mecanismos de defesa e melhorá-los. Para os nossos mecanismos de entrega e melhorá-los. O determinismo maternal pode ser torneado pela nossa vontade em fazermos diferente daquilo que nos ensinaram. As marcas podem não determinar a nossa vida, tal como podemos decidir desobedecer à voz do GPS e tentar um caminho alternativo, lembrando-nos que já houve um tempo em que era natural encontrarmos o caminho sozinhos. Mas as marcas são isso mesmo, são aquilo que fica, o traço, o sinal visível, marca-se a pele, marca-se a alma, fixa-se, delimita-se. As marcas são também fronteiras, margens entre aquilo que nos deram e aquilo que procurámos.
Deixamos marcas. Vivemos com as marcas. Delimitamos o espaço, o que é nosso, roubado aos outros, negociado, conquistado. E passamos esta nossa maneira de entender as fronteiras para os nossos filhos. Como ontem, quando eu disse ao meu filho que era natural ele ainda não conseguir resolver tudo sozinho e que a mãe ficava contente por poder ajudá-lo. E se a mãe não o pudesse ajudar, que os dois podíamos ir à procura de quem nos ajudasse. Ele agradeceu- me com os olhos. E hei-de ensiná-lo a encontrar as palavras para o dizer, mais tarde, para o caso de haver quem não saiba ler-lhe nos olhos e precise que ele o diga: ainda bem que estás aí, ainda bem que não tenho de resolver tudo sozinho. Ela, a irmã, para não fugir às marcas de género nem tentar um discurso politicamente correcto que diz que todos somos iguais e a socialização é que nos diferencia, encontrou mais cedo as palavras para dizer o que sente: se eu estivesse mesmo no teu coração, compreendias como é que me sinto quando falas assim zangada comigo. Formulação incrível de uma criatura tão pequena para pedir à mãe que a tranquilize e lhe diga que a ama, mesmo quando se zanga com ela. Por enquanto, ainda sei as palavras. Perdi-as para a minha mãe, encontro-as todos os dias para os meus filhos. E um dia, sem mãe e com filhos em evolução ou em revolução, serei eu sozinha, a encontrar as palavras para falar comigo e para me dizer: tu consegues, eu estou aqui. Nunca estás sozinha.
As mães têm sempre razão.
RD, 23.02.2011