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quarta-feira, 27 de junho de 2012

Como usar o teu dragão


Nenhum dragão te salva, filha. Quem me dera ter-te dito isto há muitos anos. Mas achei que não o devia fazer, não me senti no direito de te impedir de sonhar e acreditei que serias sempre moderada nos sonhos. O que digo eu? Eu sei que os sonhos não são moderados, ou seriam projetos. Já imaginaste? Toda a gente a dizer: então o que projetas tu? Esta noite tive um projeto assustador. Não, não queria que a tua vida fossem só projetos. E vi-te tão forte, criei-te tão forte. Olha o que fizeste, olha como sempre conseguiste. E no entanto. Estás agora aqui sentada a olhar para mim, os olhos feitos água, outra vez vida e água, como no início, como quando estavas dentro de mim e eu protegia-te da dor com o meu corpo. Sabes que nunca me deixei sofrer enquanto estava grávida de ti? Nem uma pontada mais funda, nada. Queria que conhecesses o estado único de proteção absoluta. Mas não foi um dragão, filha. Foi vida e água.

Sabes, eles são assim, os dragões, está na natureza deles não nos poderem salvar. Tu sentas-te e vês o rasgo no céu, a sombra da asa, o calor súbito, um vento que fica a despedir-se do que passou. E tu aqui sentada com o teu sofrimento, como se quanto mais sofresses, mais ele fosse visível ao longe, lá de cima, pareces um farol de sofrimento, sempre aceso, à espera de salvamento.  Eles não virão, filha. Nunca vêm. Se foi cruel deixar-te acreditar que existem? Talvez. Mas eles existem e isso não to podia negar. Os dragões existem, filha. Mas tens de os saber usar. Vês? Os teus olhos brilham de novo, afastam a água. É um sonho que vem aí ou um projeto?

Tu podes sentar-te assim, como agora, e olhar o céu. Podes fazê-lo até todos os dias. Durante dez minutos, não mais. E olhas o azul e vês o rasgo, sentes o frio da sombra, o calor do bafo, o vento que se despede. E nesses momentos sonhas. E quando tiver passado, quando acabar, estás aqui na mesma. Ele não te leva às costas para sobrevoar o mundo e veres as suas maravilhas e os seus terrores. Não, tu vives no meio das maravilhas e dos terrores e és parte deles. Ele não te cura com a baba mágica. A dor é tua e enquanto a acarinhares como parte de ti, ela vai continuar aí. Do que tens medo, filha? De seres menos sem a tua dor e sem o dragão? És menos dor. Tu não és a dor. Deixa-a ir. Amarra-a na ponta da cauda quando ele passar. Não, não te estou a dizer que, afinal, ele te leva a dor. Mas tu podes mandá-la embora. Sim, estou a confundir sonho e projeto, tens razão. Sabes que as mães encontram sempre forma de dar utilidade às flores.

Fica aqui, tens os teus dez minutos de dragão. Ele só passa. Não te leva. Sente o alívio de não seres levada para onde não queres, mesmo que no meio do sofrimento qualquer sítio te pareça bom. Passada a dor, vais querer escolher tu.

Se estou a manipular os poderes do dragão? Claro que sim, todas as mulheres o fizeram antes de mim. E tu vais aprender a fazê-lo. Há as que sonham e acreditam no sonho e dizem que os montam e são salvas. Se vivem no sonho, não consegues falar com elas, vais parecer sempre um peixe a abrir e fechar a boca sem som. E não é a tua missão tirá-las de lá onde vivem. Também há as que negam a existência dos dragões. E mais uma vez, não é teu papel mostrar-lhes o que não querem ver. Tu sabes que eles passam. Basta olhar. E sabes que vê-los passar, sentir o seu calor, o seu frio, a sombra da asa, o vento da cauda, é o que podes ter. Não tentes agarrá-lo. Fica aqui sentada. Quando passar, verás que tudo te parece diferente e que a tua dor, afinal, se esqueceu de ser.  E mesmo que percebas que nem eu estou aqui já há muito tempo, estás tu e tu és e isso chega-te.
Aprende a usar o sonho. Dez minutos por dia. E não o confundas com um projeto. 

RD, 27.06.2012

terça-feira, 12 de junho de 2012

Coração ao alto



Pendurei o meu coração no teto. Ficou ali pendurado, ainda a bater, a deitar sangue, vieram os cães, vieram as hienas, lamberam o chão, lamberam o sangue, olharam para cima enquanto lhes cheirou a vida. Depois foram. O coração foi secando. Vieram as pessoas e todas dobravam o pescoço para o ver. Uns admiravam-lhe o tamanho, que coração tão grande, como é que ela conseguia? Outros, a forma, que coração tão bonito, porque o tirou? Outros, esmagados, baixavam os olhos, levavam a mão o peito e saiam, respeitosamente, como quem sabia o que ali se passava.

Mais tarde, o meu coração já desidratado, já sangrado, já só músculo murcho e veias secas, continuou a ser admirado. Houve ainda quem quisesse recuperá-lo. Abriram as janelas numa noite de tempestade, foi alguém que sabia que eu tenho medo dos relâmpagos. O vento bateu com as janelas, abriu-as para trás, a chuva entrou, molhou-o, escorreu por ele abaixo. Mas a água não entrou. E ele não estremeceu.  Deixou-o brilhante por fora, mas não foi absorvida, a sua textura esponjosa para sempre perdida.

Eu também continuo a voltar aquela sala onde deixei o meu coração pendurado. Sinto-lhe o peso assim que entro. Ajoelho-me no chão por não me conseguir manter de pé, tal é a pressão sobre os meus ombros. Olho-o e lembro-me. Recupero as memórias da leveza, de quando o sentia bater dentro de mim, calor e gargalhada, um eco só, o milagre espantoso de um ritmo feito de vida, eu, o sangue, o coração, todos cá dentro e eu inteira. Mas se continuar ajoelhada a memória do coração a bater mais depressa também vem. Primeiro, numa excitação mal contida, um assombro de vertigem, os pés fora do chão e tudo era possível. Depois a vertigem a transformar-se em dor, tão forte, tão intensa, tão crua. Nada me faria continuar a suportar aquela dor, nada fez. Arranquei-o. Abri a pele com as unhas, separei os músculos com os dedos, os ossos com as mãos  abertas, até o sentir. Puxei-o para fora de mim e pendurei-o. Lá, onde ninguém chega, onde eu não chego.

Passei muito tempo a tirar o sangue debaixo das unhas. Passei muito tempo a cerzir os tecidos, a coser tudo num ponto miudinho. Passei muito tempo a cuidar com delicadeza da pele que crescia. Ficaram as marcas, sim, mas são elas que me dão segurança. Passo os dedos a cada promessa de leveza, a cada súplica de amor, a cada: vai buscá-lo, por favor. Talvez um dia vá. No dia em que me ajoelhar perante o meu coração pendurado e não voltar a memória da dor que me fez arrancá-lo. Nunca mais aquela dor.  E agora não conseguiria voltar a rasgar a pele como o fiz antes. Lembro-me da sensação,  da pele, dos músculos, dos ossos a serem rasgados. Lembro-me do cheiro e dos sons e construo um horror que não senti. Mas que existe dentro de mim. Não torno.

A tentação é grande e de disfarces sempre novos. Quem me dera de novo a leveza. Agora é só ausência. Às vezes, ainda a memória de um membro mutilado. A paz de quem vive sem coração. Tão belo, ali está ele pendurado, brilha com as gotas de chuva, dir-se-ia feito de talheres de plástico.

Levanto-me, de joelhos doridos e saio devagar. Fecho a porta atrás de mim. Fica ali, onde ninguém lhe chega. Onde eu não lhe chego.

RD, 12.06.2012
Foto: Coração de Joana Vasconcelos, exposto em Versalhes, in Público.

domingo, 3 de junho de 2012

Regulador de intensidade


Dizias-me sempre, em voz baixa: "querida, sabes que é melhor assim. Fica um tom dourado, tudo ameno, tu acabas por te habituar e nem te lembras já que a luz era diferente". Tento fixar-me nos teus olhos, tento que a serenidade que mostras seja minha também. Se eu não desconfiasse de ti, era mais fácil. Mas desconfio, sei que não é verdade o que me dizes, o que me contas e tento acreditar, tento que seja verdade, porque sem isso perco-me e não sei o que fazer.

"Tu és demasiado intensa, querida, sabes que é verdade. A luz que sai de ti não deixa ninguém abrir os olhos e tu sabes que eu gosto de olhar para ti. Se me deixares rodar o botão, devagarinho, a luz vai baixando, suavizando, e tu só te sentes acalmar. Mais nada. E assim podemos ficar de olhos abertos e aguentamos olhar um para o outro.”
“Prometes que não rodas o botão totalmente? Não rodas até ao fim? Não me apagas? Por favor, diz-me que não me apagas."

"Claro que não te apago. Já to disse muitas vezes, desde que te coloquei  o botão. Só ponho a luz a um nível sustentável, na intensidade em que todos vivemos, menos tu. És demasiado intensa, tu sabes disso. Nem eu consigo viver com a tua intensidade, muito menos os outros. E eu nunca te apagaria, só te suavizo."

Tento acreditar nele, mas sei que não é verdade. Não tenho provas, mas sei que às vezes ele roda o botão até ao fim. Ouço o clique. Sinto-me desaparecer, apagar-me, desvanecer-me. Alguma coisa dentro de mim se vai encolhendo à medida que ele roda o botão e que a minha luz se suaviza. Cá dentro, nada é suave. É uma perda de fôlego, um encolher-me por dentro. Até ao clique.  E sinto de novo quando me liga, sei que há ar e só engulo água, respiro em grandes e sôfregos fôlegos, engasgo-me e duvido que consiga voltar a respirar. Naqueles segundos que demoro a retomar a vida, em que recomeço a viver a cada segunda-feira, sinto o medo de já não saber respirar, o medo de não saber onde estou, de acordar fora de mim, de não saber quem sou. E acordo e pergunto o que se passa e tu dizes-me, invariavelmente, “estavas a ter um sonho agitado, já passou, está tudo bem.”
Disseste-me uma vez que não suportavas a ideia de ver outros olhos iluminados pelos meus. Será por isso que a cada vez me apagas?

Vivo assim, encolhida, com a intensidade reduzida no nível que tu calculaste ser o certo para poderes abrir os  olhos, para ser tolerável e não luz intensa, que tudo ilumina, que não deixa espaço para sombras, que tudo revela, sem o sépia que disfarça as imperfeições.

Tu não sabes que, quando não estás, experimento rodar o botão. Achaste que o cravavas bem fundo, num sítio onde eu não chegasse. E eu sei que não te devo dizer que lhe chego. Estendo a mão e rodo devagarinho, para me habituar a mim mesma, esquecida do que sou neste tom suave em que me manténs. Aos poucos consigo habituar-me a ver tudo sem sombras e sem filtro suavizante. E nada me parece feio e assustador, apenas inteiro e vivo. Sei que tenho de voltar a rodar o botão para a posição em que o deixaste, decorei-a com a ponta dos dedos. Despeço-me devagar do brilho do que é a vida inteira e sinto-me encolher de novo. Um dia, talvez consiga perder o medo de que os outros não consigam abrir os olhos na minha presença. Nesse dia fujo. Arranco o botão, com ele no máximo e saio para o mundo. E sei que não me seguirás, porque se calhar só tu não consegues abrir os olhos. 

RD, 03.06.2012