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domingo, 3 de junho de 2012

Regulador de intensidade


Dizias-me sempre, em voz baixa: "querida, sabes que é melhor assim. Fica um tom dourado, tudo ameno, tu acabas por te habituar e nem te lembras já que a luz era diferente". Tento fixar-me nos teus olhos, tento que a serenidade que mostras seja minha também. Se eu não desconfiasse de ti, era mais fácil. Mas desconfio, sei que não é verdade o que me dizes, o que me contas e tento acreditar, tento que seja verdade, porque sem isso perco-me e não sei o que fazer.

"Tu és demasiado intensa, querida, sabes que é verdade. A luz que sai de ti não deixa ninguém abrir os olhos e tu sabes que eu gosto de olhar para ti. Se me deixares rodar o botão, devagarinho, a luz vai baixando, suavizando, e tu só te sentes acalmar. Mais nada. E assim podemos ficar de olhos abertos e aguentamos olhar um para o outro.”
“Prometes que não rodas o botão totalmente? Não rodas até ao fim? Não me apagas? Por favor, diz-me que não me apagas."

"Claro que não te apago. Já to disse muitas vezes, desde que te coloquei  o botão. Só ponho a luz a um nível sustentável, na intensidade em que todos vivemos, menos tu. És demasiado intensa, tu sabes disso. Nem eu consigo viver com a tua intensidade, muito menos os outros. E eu nunca te apagaria, só te suavizo."

Tento acreditar nele, mas sei que não é verdade. Não tenho provas, mas sei que às vezes ele roda o botão até ao fim. Ouço o clique. Sinto-me desaparecer, apagar-me, desvanecer-me. Alguma coisa dentro de mim se vai encolhendo à medida que ele roda o botão e que a minha luz se suaviza. Cá dentro, nada é suave. É uma perda de fôlego, um encolher-me por dentro. Até ao clique.  E sinto de novo quando me liga, sei que há ar e só engulo água, respiro em grandes e sôfregos fôlegos, engasgo-me e duvido que consiga voltar a respirar. Naqueles segundos que demoro a retomar a vida, em que recomeço a viver a cada segunda-feira, sinto o medo de já não saber respirar, o medo de não saber onde estou, de acordar fora de mim, de não saber quem sou. E acordo e pergunto o que se passa e tu dizes-me, invariavelmente, “estavas a ter um sonho agitado, já passou, está tudo bem.”
Disseste-me uma vez que não suportavas a ideia de ver outros olhos iluminados pelos meus. Será por isso que a cada vez me apagas?

Vivo assim, encolhida, com a intensidade reduzida no nível que tu calculaste ser o certo para poderes abrir os  olhos, para ser tolerável e não luz intensa, que tudo ilumina, que não deixa espaço para sombras, que tudo revela, sem o sépia que disfarça as imperfeições.

Tu não sabes que, quando não estás, experimento rodar o botão. Achaste que o cravavas bem fundo, num sítio onde eu não chegasse. E eu sei que não te devo dizer que lhe chego. Estendo a mão e rodo devagarinho, para me habituar a mim mesma, esquecida do que sou neste tom suave em que me manténs. Aos poucos consigo habituar-me a ver tudo sem sombras e sem filtro suavizante. E nada me parece feio e assustador, apenas inteiro e vivo. Sei que tenho de voltar a rodar o botão para a posição em que o deixaste, decorei-a com a ponta dos dedos. Despeço-me devagar do brilho do que é a vida inteira e sinto-me encolher de novo. Um dia, talvez consiga perder o medo de que os outros não consigam abrir os olhos na minha presença. Nesse dia fujo. Arranco o botão, com ele no máximo e saio para o mundo. E sei que não me seguirás, porque se calhar só tu não consegues abrir os olhos. 

RD, 03.06.2012

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