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terça-feira, 12 de junho de 2012

Coração ao alto



Pendurei o meu coração no teto. Ficou ali pendurado, ainda a bater, a deitar sangue, vieram os cães, vieram as hienas, lamberam o chão, lamberam o sangue, olharam para cima enquanto lhes cheirou a vida. Depois foram. O coração foi secando. Vieram as pessoas e todas dobravam o pescoço para o ver. Uns admiravam-lhe o tamanho, que coração tão grande, como é que ela conseguia? Outros, a forma, que coração tão bonito, porque o tirou? Outros, esmagados, baixavam os olhos, levavam a mão o peito e saiam, respeitosamente, como quem sabia o que ali se passava.

Mais tarde, o meu coração já desidratado, já sangrado, já só músculo murcho e veias secas, continuou a ser admirado. Houve ainda quem quisesse recuperá-lo. Abriram as janelas numa noite de tempestade, foi alguém que sabia que eu tenho medo dos relâmpagos. O vento bateu com as janelas, abriu-as para trás, a chuva entrou, molhou-o, escorreu por ele abaixo. Mas a água não entrou. E ele não estremeceu.  Deixou-o brilhante por fora, mas não foi absorvida, a sua textura esponjosa para sempre perdida.

Eu também continuo a voltar aquela sala onde deixei o meu coração pendurado. Sinto-lhe o peso assim que entro. Ajoelho-me no chão por não me conseguir manter de pé, tal é a pressão sobre os meus ombros. Olho-o e lembro-me. Recupero as memórias da leveza, de quando o sentia bater dentro de mim, calor e gargalhada, um eco só, o milagre espantoso de um ritmo feito de vida, eu, o sangue, o coração, todos cá dentro e eu inteira. Mas se continuar ajoelhada a memória do coração a bater mais depressa também vem. Primeiro, numa excitação mal contida, um assombro de vertigem, os pés fora do chão e tudo era possível. Depois a vertigem a transformar-se em dor, tão forte, tão intensa, tão crua. Nada me faria continuar a suportar aquela dor, nada fez. Arranquei-o. Abri a pele com as unhas, separei os músculos com os dedos, os ossos com as mãos  abertas, até o sentir. Puxei-o para fora de mim e pendurei-o. Lá, onde ninguém chega, onde eu não chego.

Passei muito tempo a tirar o sangue debaixo das unhas. Passei muito tempo a cerzir os tecidos, a coser tudo num ponto miudinho. Passei muito tempo a cuidar com delicadeza da pele que crescia. Ficaram as marcas, sim, mas são elas que me dão segurança. Passo os dedos a cada promessa de leveza, a cada súplica de amor, a cada: vai buscá-lo, por favor. Talvez um dia vá. No dia em que me ajoelhar perante o meu coração pendurado e não voltar a memória da dor que me fez arrancá-lo. Nunca mais aquela dor.  E agora não conseguiria voltar a rasgar a pele como o fiz antes. Lembro-me da sensação,  da pele, dos músculos, dos ossos a serem rasgados. Lembro-me do cheiro e dos sons e construo um horror que não senti. Mas que existe dentro de mim. Não torno.

A tentação é grande e de disfarces sempre novos. Quem me dera de novo a leveza. Agora é só ausência. Às vezes, ainda a memória de um membro mutilado. A paz de quem vive sem coração. Tão belo, ali está ele pendurado, brilha com as gotas de chuva, dir-se-ia feito de talheres de plástico.

Levanto-me, de joelhos doridos e saio devagar. Fecho a porta atrás de mim. Fica ali, onde ninguém lhe chega. Onde eu não lhe chego.

RD, 12.06.2012
Foto: Coração de Joana Vasconcelos, exposto em Versalhes, in Público.

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