Pendurei o meu coração
no teto. Ficou ali pendurado, ainda a bater, a deitar sangue, vieram os cães,
vieram as hienas, lamberam o chão, lamberam o sangue, olharam para cima
enquanto lhes cheirou a vida. Depois foram. O coração foi secando. Vieram as
pessoas e todas dobravam o pescoço para o ver. Uns admiravam-lhe o tamanho, que
coração tão grande, como é que ela conseguia? Outros, a forma, que coração tão
bonito, porque o tirou? Outros, esmagados, baixavam os olhos, levavam a mão o
peito e saiam, respeitosamente, como quem sabia o que ali se passava.
Mais tarde, o meu
coração já desidratado, já sangrado, já só músculo murcho e veias secas,
continuou a ser admirado. Houve ainda quem quisesse recuperá-lo. Abriram as
janelas numa noite de tempestade, foi alguém que sabia que eu tenho medo dos
relâmpagos. O vento bateu com as janelas, abriu-as para trás, a chuva entrou,
molhou-o, escorreu por ele abaixo. Mas a água não entrou. E ele não estremeceu.
Deixou-o brilhante por fora, mas não foi
absorvida, a sua textura esponjosa para sempre perdida.
Eu também
continuo a voltar aquela sala onde deixei o meu coração pendurado. Sinto-lhe o
peso assim que entro. Ajoelho-me no chão por não me conseguir manter de pé, tal
é a pressão sobre os meus ombros. Olho-o e lembro-me. Recupero as memórias da
leveza, de quando o sentia bater dentro de mim, calor e gargalhada, um eco só, o
milagre espantoso de um ritmo feito de vida, eu, o sangue, o coração, todos cá
dentro e eu inteira. Mas se continuar ajoelhada a memória do coração a bater
mais depressa também vem. Primeiro, numa excitação mal contida, um assombro de
vertigem, os pés fora do chão e tudo era possível. Depois a vertigem a
transformar-se em dor, tão forte, tão intensa, tão crua. Nada me faria
continuar a suportar aquela dor, nada fez. Arranquei-o. Abri a pele com as
unhas, separei os músculos com os dedos, os ossos com as mãos abertas, até o sentir. Puxei-o para fora de
mim e pendurei-o. Lá, onde ninguém chega, onde eu não chego.
Passei muito
tempo a tirar o sangue debaixo das unhas. Passei muito tempo a cerzir os
tecidos, a coser tudo num ponto miudinho. Passei muito tempo a cuidar com
delicadeza da pele que crescia. Ficaram as marcas, sim, mas são elas que me dão
segurança. Passo os dedos a cada promessa de leveza, a cada súplica de amor, a
cada: vai buscá-lo, por favor. Talvez um dia vá. No dia em que me ajoelhar
perante o meu coração pendurado e não voltar a memória da dor que me fez
arrancá-lo. Nunca mais aquela dor. E
agora não conseguiria voltar a rasgar a pele como o fiz antes. Lembro-me da
sensação, da pele, dos músculos, dos ossos
a serem rasgados. Lembro-me do cheiro e dos sons e construo um horror que não
senti. Mas que existe dentro de mim. Não torno.
A tentação é
grande e de disfarces sempre novos. Quem me dera de novo a leveza. Agora é só
ausência. Às vezes, ainda a memória de um membro mutilado. A paz de quem vive
sem coração. Tão belo, ali está ele pendurado, brilha com as gotas de chuva,
dir-se-ia feito de talheres de plástico.
Levanto-me, de
joelhos doridos e saio devagar. Fecho a porta atrás de mim. Fica ali, onde
ninguém lhe chega. Onde eu não lhe chego.
RD, 12.06.2012
Foto: Coração de Joana Vasconcelos, exposto em Versalhes, in Público.
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