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terça-feira, 14 de junho de 2011

Bom apetite, meu amor


Estão sentados frente a frente, num restaurante barato, desses de grelhados, com mesas iguais a outras em qualquer vila de beira-mar. Ela já lá vai há 20 anos. Mas ele não o sabe.
Têm 50 e poucos anos. Os dois enxutos, em forma, bronzeados. Precisam de óculos de ver ao perto, mas modernos, em massa, coloridos, os dela e os dele. Apesar de ela não saber se ele vê muito mal ou não. Ela é bonita, uns olhos claros, quase cinzentos, vivos, o cabelo escuro, a pele morena. Ele é um homem atraente - não é para evitar a palavra bonito, é só porque ele não é bonito. O nariz é um pouco curvo, o que, num homem, nem fica mal. O cabelo rebelde, meio escuro, meio grisalho, meio encaracolado, meio despenteado. Calças vermelhas, um pólo azul-escuro. Não afectado, um estilo descontraído de quem está bem em qualquer lugar. Não meio bem. Por inteiro. Até naquele restaurante barato, em que partilham uma posta de bacalhau grelhado. Meia posta.

Foi ela que sugeriu que o fizessem. Ele pede um copo de vinho tinto, insiste para que ela o acompanhe, ela é firme na recusa, alegre, sem ser ruidosa. Quer água, apenas. O prato chega, ela parte a posta a meio. Pergunta-lhe se quer que lhe arranje o peixe. Ele recusa, como quem agradece. Diz-lhe: bom apetite, meu amor. Apesar de ele não saber que a maior amiga dela se chama Filipa. Apesar de ela não saber se ele tem toalhas em casa ou tabuleiros para o jantar que vão fazer no dia seguinte para os filhos dele, a neta dele.

Distraio-me do meu jantar, fico perdida na conversa deles, a tentar encontrar a intimidade dos dois. Ainda feita de desconhecimento – da graduação dos óculos, de não saber que ele nunca bebe café depois das 5 da tarde. E, no entanto, é uma relação: meu amor. Ela acaricia-lhe a mão num intervalo da refeição. Diz-lhe o que fará para o jantar, o tal jantar para a família dele, em casa dele, cujos utensílios de cozinha ela desconhece. Ele diz-lhe que tem uma toalha preta, bonita, fica bem com os pratos.

Combinam como farão na manhã seguinte: tens de lavar o cabelo amanhã? Pergunta-lhe ele. Já sabe que ela não lava todos os dias o cabelo? Ou que lavar o cabelo implica mais tempo, para o tratar, secar? Sabe-o dela ou da ex-mulher, de todas as outras mulheres? Não, amanhã não lavará o cabelo. Podem sair os dois de manhã. Na segunda, ela ainda não sabe se terá trabalho para fazer e quando está a trabalhar não ouve o telemóvel, informa-o. Ele decide que o melhor é ela vir prevenida com o saco de praia. Terá um saco-casa para quando dorme em casa dele?

Continuo agarrada à conversa deles e não desenhei nem um pouco de intimidade. Vê-se a atenção com que ouvem o outro, mas quase tudo o que dizem parece ser novidade. Ele não sabe que ela tem uma tia com quem vinha sempre para aquela vila, há 20 anos que o faz. Não sabe dos problemas graves da filha da tia, um horror.

E, de repente, começam os dois a negociar, rapidamente, tal como decidiram a ementa do jantar, regras de vida em comum. A tal intimidade que eu procurava está ali a ser negociada, naquele momento, à mesa, em frente ao prato de bacalhau grelhado. Perdi a deixa anterior, mas a frase dele fez-me ignorar de novo a conversa dos meus filhos: E quanto a visitas, cada um vai quando puder. Tu não tens de ir a todo o lado comigo, eu não tenho de ir a todo lado contigo. Ela concorda, claro que sim, eu vou jantar com a minha amiga (a tal que tem marido, filhos, que se chama Filipa), o marido fica com as crianças, ela precisa de desabafar, vamos as duas. Ele confirma: claro, vocês as duas precisam de conversar, não vai estar aqui o rapaz ali sentado a ouvir. Claro que não, diz ela.
Ele aproveita para lhe falar de um jantar em meados de Setembro ao qual ela não tem de ir. Aliás, nem faz sentido. O equilíbrio dos jantares negociado.

Ela corta-lhe o melão em pedaços mais pequenos. Pede palitos com um gesto de mão de quem está habituada a ser obedecida. Repara no gesto, pensei eu. Repara. Ela vai fazê-lo para ti, qualquer dia, quando não tiveres nada de novo para lhe contar. Vai levantar o braço assim, o queixo em linha com o braço, um ar imperial, uma rainha: traga-me os palitos. Ele não viu o gesto.
Pensei que fosse usar os palitos para picar os pequenos pedaços de melão que cortou. Afinal não, a rainha queria apenas palitar os dentes. Tive vontade de lhe perguntar, a ele: e agora, eras capaz de lhe chamar meu amor? Boa limpeza de dentes, meu amor.

Uma relação: uma carícia na mão, um bom apetite, meu amor, uma ementa de jantar decidida em comum, regras de convivência harmoniosa (a palavra é dele, insiste que precisa de estar em harmonia, com h-, com todos) discutidas ao jantar, num restaurante sem nome, numa vila de férias. Que relação é esta? Tentei perceber. Estão divorciados, obviamente. Têm filhos de cada um - ela disse lá pelo meio da salada uma frase perdida “os filhos é que não…”. Ele concordou. Que pena ter perdido o contexto, era mais uma regra, importante, esta, da relação com os filhos. O que será que os filhos não? Conhecem-se há quanto tempo? Ela dorme em casa dele quando? Quando lhe apetece? A ele? A ela? Aos dois? Porque não lhe mexe nas toalhas da cozinha? Será que dormem juntos há pouco tempo, ela ainda não se sente à vontade para lhe mexer nas louças? O jantar é para a apresentar à família? Vai apresentar aos filhos uma mulher de quem não conhece a melhor amiga? Quantas relações têm para trás, para estarem tão despachados a definir as regras desta?

Alguma pergunta destas importa? Claro que não. Apenas o meu amor. Tudo em branco, pela frente. As possibilidades que se fecharão cada vez que ela repetir aquele gesto que ele não viu. O começo, sempre repetido, cada vez mais rápido. Já sabemos do que precisamos, é só discuti-lo. Meia relação. E gentileza, por enquanto: bom apetite, meu amor.

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