Ao João, homem de fé, com quem posso blasfemar e falar de todas as coisas.
Minha mãe, senhora de mão de ferro, braços fortes e vontade de uma liga inquebrável, educou-me nos bons princípios da igreja católica. Uma menina tem uma lista infindável de bons comportamentos a aprender ou o inferno à espera. Hoje vejo a grande vantagem do inferno. Todos os dias, quando tento educar os meus filhos pela ética, percebo como seria mais fácil a ameaça do fogo eterno. Que jeito dá o diabo, sempre atento, sempre à espera da primeira falha, mesmo quando a internet está desligada e até nos cantos a que o Google Street View não chega.
Uma menina não se queixa, mostrar o sofrimento aos outros é falta de pudor. Uma menina não se ri à gargalhada. Estar feliz é razão para sermos castigados. Este ponto ainda hoje me confunde. Será por razões preventivas? Devemos estar sempre infelizes para nos prepararmos para a infelicidade inevitável? Hei de perguntar. Em abono da verdade histórica do meu crescimento, a pedagogia do ser discreta no sofrimento foi mais eficaz do que a que pregava a recusa das gargalhadas. Calar a alegria sempre me pareceu contra-natural. E mais difícil do que calar a dor. Rir os dois minutos de felicidade a que temos direito sem medo de provocar os deuses invejosos continua a ser um postulado da minha religião pessoal.
Com a adolescência, naturalmente, as dúvidas. Sobretudo com a Filosofia. Não que tenha percebido a maior parte das conversas difíceis daqueles senhores com ar sisudo. Mas aprendi a perguntar. O que percebi foi básico, elementar e, no entanto, não me deixou voltar para o mesmo lugar. Percebi que o mundo podia ser interrogado com ou sem deus. Mas que tinha de ser interrogado. Que a razão da nossa existência e da nossa forma de nos relacionarmos com os outros deve ser escrutinada. Foi uma boa lição de vida que a escola me ensinou. Não sei as datas, nem que teorias correspondem a que filósofos. Tenho vagas ideias sobre um Schopenhauer depressivo e um Kant das antinomias. Teria má nota num exame de Filosofia. Mas aprendi a questionar. E só há pouco tempo (sou uma aprendente lenta) percebi como é difícil fazermos as perguntas certas.
Mais tarde, e quando comecei a conhecer melhor a história das civilizações, percebi o que era a religião. Não foi uma rutura radical, não foi uma zanga com Deus, não decidi deixar de lhe falar. Foi mais um desencanto com todos os deuses, em geral, por não aceitar que as propriedades divinas de que são dotados, por fraquinhas que sejam, não se possam usar sempre que uma criança é violentada. Que os poderes não se possam convocar sempre que uma criança morre de fome. Que um ser divino possa virar a cara e fingir que não vê a imagem daquele bebé na Somália. E o livre arbítrio não me consola. Pois é, escolheram mal o país. Até a latitude é má, o continente todo. Que crianças irresponsáveis, não sabem escolher um sítio com água para nascer. Ou o meu dogma favorito: os desígnios do senhor são misteriosos. Dá tanto jeito, que o uso até para as minhas mudanças de humor: “olha lá, ainda há pouca estavas tão bem disposta e agora estás com essas trombas?!” “Sim, o que queres? Os desígnios do senhor são misteriosos.”
Quando passei a olhar de fora, nunca mais consegui olhar de dentro. Perdi em companhia e tenho de encontrar formas variadas de substituir o pensamento mágico. É trabalhoso. Em vez de ser o destino que decidiu, sou eu a responsável. Em vez de atirar com as culpas para o diabo, as provações, o que for, sou eu a culpada. Em vez de usar o azar (naquela graciosa e única mistura que conseguimos fazer entre religião e superstição) para justificar o que acontece, tenho de encontrar uma explicação feita de fenómenos físicos. Dá trabalho. É cansativo e não tem recompensa que se adivinhe no post mortem.
Hoje tenho uma religião privada. Desculpem, mas não aceito inscrições. É íntima e eu aprendi o pudor. Herdei da outra religião. Acredito que, de uma forma que a ciência explica, o universo tem mecanismos próprios para encontrar o equilíbrio. Nada se perde, tudo se transforma. Uma capacidade infinita de se adaptar que me faz recusar o apocalipse. Ponho-lhe uma pitada de budismo, porque acredito que a divindade somos nós e a nossa força de vontade para fazermos o que quisermos. E que devemos respeitar os outros seres como iguais. Estas são as constantes da minha religião. As variáveis variam. Há dias em que a minha religião é a poesia e acredito que não há forma mais bela e simples de ver o mundo. Um golpe de asa e eu era além. Não são precisas mais palavras para dizer o quase. Cortaram os trigos. Agora a minha solidão é maior. Dois versos e sentimo-nos isolados, nem o vento nos faz companhia.
E desculpe, João, mas não sou panteísta. Quero dizer, sou. Também sou. Sou quase tudo. É ainda pior, a minha religião parece uma daquelas lojas antigas em que se encontra veneno para os ratos, rolos de cozinha, passadores de leite e morangos da horta. Tento não ser maniqueísta, o que nem sempre é fácil. Às vezes, os maus são mesmo maus e isso dá-nos segurança. Sou de uma religião feita de pedaços disto e daquilo. De dogmas inquestionáveis acerca da necessidade de nos dedicarmos aos outros e de sermos honestos connosco. De um cepticismo praticante em relação a tudo o que me é apresentado como definitivo. De mar e de montanhas. De cinema e de literatura. Acredito no Gandalf e no Frodo, no Harry Potter, na Rainha de Copas e na Alice.
De pessoas. Acredito nas pessoas e até gosto delas, o que é estranho, já que as pessoas são falíveis. Há pessoas maravilhosas em quem eu acredito e que, por muitos disparates que façam, serão sempre extraordinárias. Preciso ainda de magia para tirar os pés do chão por uns segundos, já que a minha prática de yoga não me deixa fazer tanto. Não venero um deus com cabeça de elefante, mas acredito que a meditação me ajuda a não precisar de estímulos constantes e a disciplinar-me. Desconfio tanto de quem usa o pensamento mágico para explicar tudo o que lhe acontece na vida como quem recusa a magia como sendo infantil. Eu sei que é uma religião estranha, mas não vos quero convencer. Como disse, não aceito mais praticantes. É uma religião unipessoal, da qual sou fundadora, sócia única, para não ter de submeter a votação o que todos os dias lhe acrescento e o que lhe retiro. Tento sempre acrescentar mais do que retirar. Ajusto-a a mim até me sentir confortável. Sou a CEO da minha religião. Soa mesmo bem.
E descubro, afinal, que o título está desadequado ao texto. Não perdi a minha religião. Encontrei-a. Estou sempre a encontrá-la. Nas pessoas, nos sítios por onde passo, no sabor incomparável do café que bebo de manhã, no sorriso ensonado dos meus filhos. Dentro de mim. Mas mantenho o título, porque gosto da música e a minha religião também é feita de música. Não deve haver em mim religião sem música. É mais um dogma meu.
RD, 30.07.2011
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