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segunda-feira, 29 de agosto de 2011

A arte do pousio


Este é um texto arriscado. Posso incorrer naquilo que é considerado um pecado capital na minha religião, o de fazer generalizações. Aliás, preciso mesmo de o fazer ao longo do texto, sei-o, ainda não o escrevi e, no entanto, não consigo parar de escrevê-lo. Antes me apetecesse escrever outra coisa, uma assim mais para o lado das virtudes. Mas não. Preciso, sabe-se lá porquê, ou antes, eu sei, mas demoraria muito a explicar, de escrever sobre a necessidade de falar ou de ficar calado. E vou fazê-lo associando-o aos géneros. Já me sinto a derrapar, mas vocês são tolerantes e perdoam-me, por enquanto.

É velha a afirmação de que as mulheres precisam de falar e os homens preferem agir. Para além de generalização, vulgarizou-se tanto que incorro naquele outro pecado, que é o de dizer banalidades. Interrogo esta necessidade de os homens se calarem, mesmo quando os interpelamos, mesmo quando dizemos que estão a ser uns brutos insensíveis, mesmo que ameacemos que a nossa vida depende de falarem. Pode ser defensivo. Se não falarem, não se enterram. Pode ser ofensivo, vale tão pouco esta conversa, que nem me digno responder. Pode ser muita coisa. Pode ser uma herança ancestral dos caçadores que eram, e que sabiam que se ficassem calados e esperassem, a presa acabaria por lá ir ter.

Nós precisamos de falar à exaustão. Esmiuçar. Encontrar as razões, as des-razões, as causas e os efeitos, reais ou inventados, de preferência imaginados. Somos perfeitamente racionais, capazes de obter uma nota excelente num exercício de retórica com os argumentos e contra-argumentos que esgrimimos, numa discussão que fazemos sozinhas, enquanto eles acenam a cabeça, antes de começarem a agitar-se e a soprar. Se a vida fosse um exercício de retórica, ganhávamos, de certeza (a bicicleta?). Às vezes parece que é, ou antes fosse. Ou somos perfeitamente irracionais, deixamos as emoções transbordarem olhos fora em lágrimas abundantes, cristalinas, soluçamos, mas não paramos de falar. E obrigamos o outro a um exercício linguístico cujo estilo não escolheu, cujo tema não lhe apetece, cujo desfecho já conhece. Temos de compreender e compreendemos falando.

Dei por mim, há pouco, a ouvir uma amiga contar os argumentos e contra-argumentos de uma discussão ponderosa, um assunto sério, de amores, pois claro. Porque fazemos mais isso: para além de precisarmos de falar com o sujeito em questão, precisamos de falar sobre o que falámos com uma amiga, duas, meia dúzia. E esmiuçar o esmiuçado, num exercício que não tem fim, que se auto-alimenta, de análise do discurso do mais sofisticado que há.

Ele disse-me bom-dia. O que achas que queria dizer?

Acho que te queria dizer bom-dia. Mas foi assim um bom-dia como? Carrancudo? Insinuante? Bem-disposto? É que se foi bem-disposto, já tem outra.

Não, foi carrancudo.

Ah, isso é completamente diferente. Tens de falar com ele.

E continuamos. Dizia eu que ouvia um destes relatos, na verdade com mais conteúdo. Pensei, e disse-lho: vocês já disseram isso muitas vezes um ao outro, só se vão cansar, estafar a vossa relação, encher o vosso amor de palavras desnecessárias. E mesmo que não tivessem dito já tudo isso, não sabem que assim é? Não seria melhor afastarem-se um tempo, ficarem calados, deixarem pousar e ver o que sobra, em vez de exaurirem o que sentem nessas conversas? Ouvi-me dizer estas palavras e toda eu me recolhi. Assustei-me, pensei: estou possuída, é o demónio, mesmo não acreditando nele, apanhou-me, é castigo, é praga, é qualquer coisa sobrenatural, ai socorro, quem me salva. Olhei-me ao espelho. Não estava a crescer um bigode, a pele continua macia. As maminhas estão cá. Fui fazer o teste definitivo: olho para uma fotografia do Clooney ao lado da namorada. Acho-o lindo, ela uma descarada sem graça. Fico descansada, continuo mulher. Então o que me deu para começar a pregar o pousio, em vez da conversa esclarecedora, iluminadora, racional e adulta?

Deu-me uma terra queimada, devastada pelo fogo, destroços de imponentes árvores, reduzidas a cinzas, troncos enrolados. Uma camada de cinza alta, enterra-se os pés a andar, entranha-se na pele, abafa os sons, torna tudo negro.

Deu-me um dia de chuva, que ensopou a cinza, fê-la entrar na terra. Misturou o cheiro a queimado com o da terra molhada.

Deu-me um dia de sol, não muito quente, sol meigo, brilhante, secou a cinza, secou a lama, acendeu a vida.

Deu-me um dia de vento, muito vento. Soprou para longe os restos de cinza que se escondiam nos cantos escondidos dos troncos, soprou o lixo, soprou o cheiro a queimado.

Por baixo, estava a terra preta, fertilizada pela cinza. Ervas pequenas, muitas, um tapete delas, rompiam pelo meio da terra, pequenos caules, muito verdes, muito frescos, cheios de vida. Um pequeno pinheiro aqui e ali, tão pequenino, parece uma aldeia em miniatura. Um dia, vai dar sombra às crianças. Uma flor ainda em botão, uma promessa de branco, mais uma mancha de cor no chão escuro. Imaginem uma terra molhada, preta, cheia de pontinhos verdes e brancos, a rebentar de vida.

O pousio. O silêncio. E a recuperação, a transformação do queimado em vida, o retorno dos cheiros e dos sons. Foi isto que percebi que me deu e que quis dar à minha amiga. Não queimes mais o que já está queimado. Não destruas o que ainda pode ser vida. Espera um dia de chuva. Um dia de sol. Um dia de vento. Talvez os homens conheçam a arte do pousio. Ou talvez sejam só negligentes e pensem “deixa-a pousar”. Não o saberemos. Nem queremos ser como eles, vamos continuar a falar e a precisar de palavras, de muitas palavras. Mas às vezes conseguimos ficar caladas. E quando o conseguimos, vemos a renovação a acontecer e ficamos, encantadas, a olhar para o que sempre lá esteve, escondido pelas palavras. 

RD, 25.08.2011

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