Número total de visualizações de páginas

terça-feira, 6 de setembro de 2011

As Horas


Ao Eduardo, a quem desejo que a felicidade sejam muitos momentos sem tempo.

Revejo o filme As Horas. Lembro-me da incomodidade que me causou quando o vi pela primeira vez, sem ter percebido bem porquê. Gostei da interpretação das três actrizes, é magnífica, mas não percebi sobretudo aquela dona de casa desesperada. A infelicidade das outras era dizível, traduzia-se em questões concretas, uma meio louca, incompreendida, acossada pelas personagens dos seus livros e fechada da vida que quer, sem a deixarem viver para impedirem que morra. A outra, um amor enjeitado, nunca acabado, pervertido numa dependência que não a deixa ser, só viver em função do homem que a trocou mas sem nunca a deixar completamente, e de quem ela trata até à morte. O suficiente para nos deixar a nós deprimidos. Mas aquela leitora dona de casa, mãe, que quer tomar comprimidos para morrer quando carrega um filho no ventre, foi-me estranha.

Agora, ao ver o filme pela segunda vez, talvez por força das circunstâncias, talvez pelas palavras ditas e não legendadas, que me obrigaram a maior atenção, percebi. Dizem que, para haver interpretação, tem de haver emoção, têm provas neurológicas. O que não nos faz sentir, não faz sentido. Pode fazer-nos até sentir repulsa, tédio, aversão. Ou identificação, olha é tal e qual o que me aconteceu, ou é mesmo daquilo que eu gosto. A arte sem emoção é trabalho, apenas. Olha que bem desenhado, que traços direitinhos. Isto não é apreciação estética, é técnica. E foi a emoção que me levou a compreender aquela personagem. Ouvi-la levantar os olhos para o relógio, o dia dela lento, uma vida toda num dia, sem saída, o sufoco do tempo que não leva a lado nenhum.

As horas. O desespero dela é o peso de quem conta o tempo. De quem olha para o relógio e espera que o tempo passe, como se nessa espera se antevisse alguma solução, ou como se esperar fosse a própria vida. Sente-se o ponteiro dos minutos a roçar a pele, sempre no mesmo lugar, vai aumentando o desgaste. Nada de especial acontece. Nada de muito mau. Nem de muito bom. Tudo é apenas uma sucessão de minutos arrastados, difíceis de saltar, todos alinhados. Não passam.

Podemos pensar que é ociosidade. E pensamos. Que disparate, não tem problemas realmente graves, o que lhe passou pela cabeça? É desequilibrada. Não nos ocorre que o desespero possa ser um problema grave. O desespero que se agarra à pele, entranha-se, toma conta dela, não a deixa respirar sem ouvir o tempo a passar. Que se ocupe, pensamos nós.

Eficientes que somos, pensamos imediatamente em formas terapêuticas de não viver assim. Fazemo-lo continuadamente. Tomamos comprimidos que nos ajudam a não sentir os ponteiros a arrastarem-se, cada vez mais pesados, ou vamos para uma solução mais natural: ocupamos as horas, os minutos, os segundos. Enchemos qualquer pequeno buraco que nos possa deixar sozinhos connosco, sem nada para fazer, com actividades, nossas, dos nossos filhos. É preciso estar sempre em actividade, não aconteça sentirmos o tempo a passar. O silêncio assusta-nos, rodeamo-nos de barulho, abafamos os pensamentos incómodos. Corremos de um lado para o outro e ainda nos gabamos disso. Estiveste quanto tempo contigo hoje? Que disparate, eu estou sempre comigo, eu sou eu. Corremos tanto e ocupamo-nos tanto a fugir de nós próprios que até é estranho o país não estar já em excesso de produção.

Dizia um amigo, há pouco tempo, que a felicidade é um estado de espírito. Talvez tenha razão. Pode até ser a euforia resultante de duas horas de ginásio, mais um negócio bem conseguido, mais um jantar brilhante num restaurante ainda mais ofuscante. Sentimo-nos bem, vencedores. E vamos para casa tarde, beijamos as crianças e adormecemos rapidamente, embalados pelo álcool que bebemos e pelo sabor da vitória no campo de batalha. Tem razão, meu amigo, é uma atitude. Decidimos pôr um sorriso na cara e mostrar a todos tudo o que a vida e o mundo têm de positivo. E podemos viver uma vida inteira assim, sem dúvida. Desde que não paremos. Não podemos dar um minuto a nós próprios, porque se nos encontramos connosco podemos ver que afinal temos vivido em esforço e que nos apetece parar um bocadinho. O pior é que, quando o queremos fazer, ninguém nos deixa. Pára lá com isso, muda de atitude, veste outro estado de espírito, toma uns comprimidos, vai às compras. Não nos incomodes com esse teu estado de espírito, tu que sempre animaste toda a gente, olha que disparate, que inconveniente, que mal que fica.

Parece que o segredo é não parar. Ocupar as horas todas. Assim não sentimos se passámos a fenda que se abre quando a leveza passa a ser insustentável e é só massa a puxar-nos para baixo. Ou então o contrário, se passámos a fenda e entrámos num espaço sem gravidade, onde tudo é fácil. Leve. As horas não existem, o tempo é medido em leveza, possibilidade, um jardim a explodir de vida. Somos alegria, mal tocamos com os pés no chão e nada é impossível. Esta força criadora, que nos leva sempre além de nós mesmos, pode não ser felicidade. Pode ser só euforia. Sabemos lá o que é a felicidade. Como diz a fabulosa Clarrisa: I remember one morning getting up at dawn, there was such a sense of possibility. You know, that feeling? And I remember thinking to myself: So, this is the beginning of happiness. This is where it starts. And of course there will always be more. It never occurred to me it wasn't the beginning. It was happiness. It was the moment. Right then.


RD, 01.09.2011 

Sem comentários:

Enviar um comentário