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terça-feira, 2 de agosto de 2011

Hei de matar uma árvore

Encosto as costas suadas ao tronco do velho mangue. Pouso o machado no chão. Penso se terei coragem de levar por diante o que me trouxe àquela sombra a que jurei não voltar. Tenho de o fazer. É ele ou eu. Levanto-me e começo a atirar com o machado contra o tronco, primeiro devagar, depois com mais força. É uma árvore centenária, o crime que cometo é homicídio triplo: matar uma árvore; matar um ser vivo que existia muito antes de mim; perturbar o equilíbrio da natureza. O peso dos meus gestos faz com que as machadadas sejam mais vigorosas. O medo do que estou a fazer mistura-se com a satisfação de saber que, depois, terei paz, e aumenta o meu vigor. Somos os dois velhos, mas eu tenho o machado. Ele tem parte de mim e tem de ma devolver.

Não posso continuar a olhar pela janela e a procurá-la na sombra do mangue. Onde tantas vezes a encontrei, ao chegar a casa. Sentada, de olhos fechados, imóvel contra o tronco, como se partilhasse da sua natureza vegetal, em paz. Deitada de lado, a cabeça apoiada na mão, a ler um livro. Enroscada numa manta, a dormir, como uma criança. A sombra está cheia dela, ela é a sombra, as formas do corpo dela recortam de luz o que a sombra quer escurecer.

O machado perfura a casca e o velho mangue reage. Vejo a imagem dela, as minhas mãos a despi-la, com sofreguidão, tantas vezes, até lhe conhecer a pele de cor. Atiro com mais força o machado contra a madeira, e a imagem desaparece. Saltam lascas cada vez maiores, vejo os meus dedos molhados a traçar linhas puras, salgadas, a marcar-lhe a pele, a incendiá-la. Atiro o machado com toda a força do meu corpo. Sinto o suor a descer-me pelas costas, vejo-a afogueada, o calor da respiração dela em mim, o teu suor misturado no meu. Aumento a frequência dos cortes, a profundidade, através da seiva. Ouço-a a ronronar, a gemer, a gritar. O buraco aberto no tronco é agora enorme, irreversível. Mas o velho mangue não parece querer desistir e continua a fazer-me ver o que quero destruir. Golpeio agora o meio do tronco mais devagar, é denso e difícil de cortar. Ouço-a a rir, enroscada em mim, as nossas gargalhadas misturadas, encantados com a magia que nos era dada sem sabermos como a tínhamos descoberto e que nos parecia sempre nova.

As imagens sucedem-se e são insuportáveis, tenho de golpear o mangue com mais força. Mas ele retalia, velho manhoso que durante anos foi cúmplice da nossa intimidade. Vejo-o a afastar os ramos para deixar os raios de sol passar e iluminar ainda mais os olhos dela. Os olhos dela. Cheios de esperança, de amor, de alegria infantil. Medo, também. Mas eu não o quis ver. Ela franzia os olhos e esfregava o nariz no meu cabelo. Morre, árvore. Golpeio ainda mais, vou buscar as últimas forças que me restam, agora não posso parar. O velho vegetal é libidinoso, vejo-o a brincar com as folhas e os ramos, a fazer os raios de sol percorrem a barriga dela, as pernas, os pés, que ela abanava no ar, uma flor de hibisco presa entre os dedos. Ela ronronava, satisfeita pelas minhas carícias, pelas do sol, da brisa, da sombra das folhas, todas concentradas na pele dela. Está quase. Mais alguns golpes e derrubo-o.

Ele apercebe-se de que o final está próximo e o que me faz ver já não são tentativas de me dissuadir, antes parecem uma despedida. Vejo-a a chorar. De felicidade, disse-me ela. Lágrimas silenciosas que lhe caíam pelas faces, os olhos a fecharem-se devagarinho, ela a sussurrar-me: não há gravidade. Só leveza. O tempo parou. Tudo está suspenso.

Ela já não é. Ou é uma ausência. Não sei se há uma gradação de existência entre não ser e ser uma ausência. Porque ela é, dentro de mim. Mas não está. Olho para a sombra do velho mangue e vejo a ausência. Ouço o rumorejar das folhas e ouço-a a ela, as gargalhadas puras dela, feitas de alegria plena. Não posso viver com uma sombra. Não posso viver com esta ausência. Tenho de a matar. Tenho de matar a sombra, a árvore, o rumorejar. Tenho de a matar a ela. Corto a madeira como se lhe cortasse a pele, a carne, os ossos, finalmente destruída, sai de dentro de mim. Devia ter sido eu a matá-la. Dobro-me ao meio, sinto os golpes como se estivesse a arrancá-la de dentro de mim, está tão funda, corre-me no sangue e eu tenho de a arrancar.  As lascas saltam, espetam-se-me na pele. Não me dói, o que me dói é lá dentro, em parte incerta, o buraco a crescer.

O velho mangue cai, finalmente. Sorrio, vitorioso. Também tu cais. Matei-te. Deixei-me cair no chão, encostado ao tronco, em cima dos pedaços afiados de madeira. Deixei cair o machado. Fecho os olhos. Já não a vejo. Só vazio.

Volto para casa, cansado, dorido. Deito-me em cima da cama sem perceber o que sinto por baixo da exaustão. Olho para fora, pela janela agora com mais luz, sem nada em frente do céu. Pela primeira vez em muitos meses, ela não está lá. Não há sombra. Fecho os olhos, satisfeito. 

Quando acordo, na manhã seguinte, verifico que a janela continua desimpedida. Aproximo-me do vidro para verificar que não há sombra na relva. Não há. Só agora ela foi. Fico ali à janela durante algum tempo. Não me quero voltar. Senti o perfume dela e estou à espera que passe. Mas não passa. E ouço a voz dela, baixa, suave: vem para a cama, meu querido. A mesma voz que sussurrava à sombra do velho mangue, agora morto. Não me posso voltar.

RD, 14.07.2011

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